Boulos deturpa texto do STF e usa fala do próprio Janones para livrá-lo no caso da ‘rachadinha’

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP), relator no Conselho de Ética da Câmara do processo contra André Janones (Avante-MG), deturpou uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) para justificar o voto pelo arquivamento da suspeita de “rachadinha” contra o parlamentar mineiro.

Janones foi importante integrante da campanha de Lula (PT) nas redes sociais em 2022. Boulos é o nome apoiado por Lula para a disputa à Prefeitura de São Paulo.

Houve pedido de vista, o que empurrou a decisão do conselho para a próxima semana.

O ponto central do voto de Boulos é a afirmação de que Janones ainda não tinha tomado posse do mandato quando teria ocorrido o ato que levantou as suspeitas: a gravação de uma reunião em que ele pede para auxiliares a devolução de parte do salário que eles receberiam na Câmara.

Para afirmar isso, Boulos usa apenas dois argumentos: decisão do STF (que ele insinua dizer o que ela não diz) e declarações do próprio Janones de que a reunião ocorreu antes de ele ser deputado.

“Antes de tudo, é preciso trazer à baila que a representação do PL [contra Janones] traz fatos ocorridos antes do início do mandato de deputado federal do representado [Janones]. O próprio representado afirma isso”, diz voto que Boulos leu na sessão.

Em seguida, ele reproduz, sem qualquer contexto, um lacônico trecho da decisão do ministro Luiz Fux que autorizou inquérito para apurar o caso no Supremo Tribunal Federal: “A Procuradoria-Geral da República aponta que ‘pelo teor do áudio noticiado, seriam correspondentes às eleições municipais de 2016′”.

A frase desconexa –o que seria correspondente à eleição de 2016?– é usada por Boulos para reforçar sua posição de que tudo ocorreu antes da posse de Janones, em 1º de fevereiro de 2019.

A íntegra da decisão do ministro do STF, porém, deixa claro que a eleição de 2016 se refere à afirmação de Janones de que teve prejuízos e dilapidação do patrimônio na fracassada candidatura naquele ano, razão pela qual estaria pedindo parte do salário dos auxiliares de volta.

O trecho completo da decisão de Fux (que é pública, leia aqui a íntegra) aponta que “a hipótese criminosa diz respeito à suposta reunião realizada na Câmara dos Deputados, na qual o congressista teria tratado ‘do repasse, pelos assessores parlamentares por ele indicados para ocupar cargos em comissão em seu gabinete, de valores correspondentes a parcela das remunerações pagas pela Casa Legislativa, os quais serviriam para a recomposição de seu patrimônio, antes utilizado para custear despesas de campanha eleitoral'”.

Fux prossegue dizendo que, de acordo com a Procuradoria-Geral da República, as despesas a serem ressarcidas “seriam correspondentes às eleições municipais de 2016”.

“Não obstante, [a PGR] ressalva que ‘o possível repasse de valores a André Luis Gaspar Janones pode estar relacionado às despesas de campanha das eleições gerais de 2018, em que foi eleito deputado federal’, tendo em vista que os fatos citados teriam ocorrido em fevereiro de 2019.”

Ou seja, a decisão de Fux, tirada do contexto por Boulos, relata exatamente o contrário do que ele sugeriu em seu voto. A PGR afirma, nesse documento, que a reunião em que Janones pede devolução do salário teria ocorrido em fevereiro de 2019, quando ele já era deputado federal.

O áudio que deu origem ao caso foi completamente ignorado no parecer de Boulos.

Os 49 minutos de gravação, cuja íntegra pode ser ouvida aqui, também indicam que a reunião ocorreu quando Janones já havia tomado posse do mandato.

O deputado –que reconheceu ser sua a voz nos áudios– fala no encontro com cerca de dez assessores que naquele dia haveria sessão no plenário da Câmara e ele ainda estava desguarnecido sobre como proceder, além de reclamar com a equipe que outros deputados já estavam apresentando projetos de lei e ele, não.

O deputado só pode apresentar projeto de lei se já tiver de posse de seu mandato.

“Cês viram aí nas notícias no Facebook, já tem uma porrada de deputado que já apresentou o projeto de lei ontem. Ontem tinha uma fila de cem deputados apresentando projeto de lei. Eu sequer sabia disso. Por que eu não sabia? Porque eu não contratei nenhum especialista em técnica legislativa”, diz o parlamentar, em um contexto em que tentava convencer a sua equipe de Minas Gerais a se mudar ou ir com frequência a Brasília.

“Hoje tem plenário à tarde. Eu não sei o que que eu vou fazer lá, eu vou chegar lá eu vou ficar perdido. Eu não sei como que é, o que eu vou fazer, que hora que eu falo, que assunto que vai ser. Por quê? Porque eu não contratei ninguém de plenário”, acrescentou Janones na reunião.

Na reunião do Conselho de Ética desta quarta, Boulos disse que não analisou o mérito das acusações contra Janones, que isso caberá à Justiça, e chegou a discutir com integrantes do PL de Jair Bolsonaro, cuja família integrou escândalos de “rachadinha” nos últimos anos.

“Francamente, não há ninguém do meu partido, deputado Abílio [Brunini, do PL-MT], acusado por ‘rachadinha’, acho que o sr. não pode dizer o mesmo. O filho do ex-presidente da República, senador Flávio Bolsonaro, é acusado por ‘rachadinha'”, disse Boulos.

Quando o deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB) protestou, Boulos emendou, deixando claro que ele e Janones são aliados: “Meu caro Gilberto, é o partido do Queiroz”, em referência a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro. “E vem aqui querer imputar ‘rachadinha’ pro lado de cá? Aqui, não.”

OUTRO LADO

A reportagem questionou Boulos por meio de sua assessoria, perguntando especificamente por que ele tratou como inquestionáveis falas da pessoa investigada, por que ele deu interpretação deturpada da decisão do ministro Luiz Fux e por que ele ignorou, em seu parecer, o aúdio em que Janones fala sobre a “rachadinha” em seu gabinete.

Boulos não respondeu diretamente a nenhuma das perguntas.

Em nota, afirmou apenas que “cumpriu rigorosamente o rito na Comissão de Ética da Câmara como relator”.

“O voto pelo não prosseguimento da denúncia não entrou no mérito, e foi baseado na jurisprudência do próprio Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, mais precisamente a preconizada no relatório que arquivou a representação 34/2014, aprovada por unanimidade, que esposou o entendimento de que o Conselho só pode julgar casos ocorridos no exercício do mandato parlamentar.”

A reportagem também procurou Janones, por meio de sua assessoria, mas não obteve resposta.

As suspeitas contra o parlamentar vieram a público após o site Metrópoles revelar áudio de 2019 em que Janones, em seu primeiro mandato como deputado, informou a assessores que eles teriam que devolver parte dos salários para que ele pudesse reconstruir seu patrimônio.

A reportagem também obteve o áudio. Dois ex-assessores do deputado federal afirmaram à reportagem que o parlamentar promoveu o esquema de “rachadinha” em seu gabinete.

“Não é [corrupção], porque o ‘devolver salário’ você manda na minha conta e eu faço o que quiser. São simplesmente algumas pessoas que eu confio e que participaram comigo em 2016 [nas eleições municipais, em que ele saiu derrotado], e que eu acho que elas entendem que realmente o meu patrimônio foi todo dilapidado. Eu perdi uma casa de R$ 380 mil, um carro, uma poupança de R$ 200 mil e uma previdência de R$ 70 mil. Eu acho justo que essas pessoas também hoje participem comigo dessa reconstrução disso”, afirmou o parlamentar na gravação.

Janones reconheceu a autenticidade da gravação, mas negou ter promovido “rachadinha”, afirmando que pediu contribuições a amigos, que se tornariam seus assessores, para quitar dívidas que ele e esses futuros assessores assumiram em conjunto nas eleições de 2016.

Disse ainda que não considera sua atitude ilícita e que, de qualquer forma, a devolução de parte dos salários dos assessores acabou não ocorrendo por orientação jurídica que recebeu.

RANIER BRAGON / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS