BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A mistura da água parada dos alagamentos com o esgoto de centros urbanos devido às enchentes pode levar à explosão de casos de hepatite A e de leptospirose no Rio Grande do Sul. Segundo especialistas, as inundações já iniciaram um processo de surto de influenza.
A aglomeração de pessoas em abrigos somada à exposição a baixas temperaturas causadas pela frente fria que chega ao estado, por sua vez, representam condições propícias para aumento de doenças respiratórias na região.
A tendência é que as consequências das enchentes que já mataram ao menos 151 pessoas e deixaram 538 mil fora de suas casas causem uma superlotação de hospitais e postos de saúde no RS.
Ao mesmo tempo que o frio facilita a disseminação de determinadas enfermidades, também pode ajudar a reduzir o número dos casos de dengue, uma vez que o mosquito não costuma se proliferar em ambientes gelados.
Pouco antes do início das inundações, a dengue tinha causado ao menos 126 mortes no estado. No entanto, o mosquito segue sendo um problema, uma vez que a temperatura tem oscilado e será difícil conter todos os focos de água parada após o esvaziamento das inundações.
Cidades menos populosas e nas quais a correnteza dos rios causou destruição pela força das águas são menos preocupantes, na visão de especialistas. O problema são as águas paradas e o contato delas com o esgoto, que, em locais com maior concentração humana, têm mais chance de estarem contaminadas.
A urina de ratos facilita a transmissão de leptospirose, e as fezes humanas ajudam na proliferação de hepatite A.
Algumas consequências das enchentes já começam a ser vistas, de acordo com o chefe do departamento de infectologia da Unesp, Alexandre Naime. Ele cita como exemplo o caso do surfista Pedro Scooby, que foi ao Rio Grande do Sul para ajudar nos resgates, e depois relatou que os amigos que o acompanharam foram hospitalizados com H1N1.
“A influenza já está acontecendo, não é mais uma hipótese. Surtos de H1N1 e outros vírus, como Sars-CoV-2, que causa a Covid, e vírus sincicial respiratório, são riscos imediatos da primeira onda de doenças que pode acontecer”, afirma.
Fátima Marinho, pós-doutora em epidemiologia pela Universidade de Montreal, no Canadá, concorda com a avaliação do colega e acrescenta outro foco de preocupação.
“A influenza e a pneumonia são problemas reais. Historicamente, há um aumento dessas doenças nesse período do ano. Com o frio que está fazendo, podemos esperar que o número de quadros graves que exigem internação suba”, diz.
Um dos temores é que as aglomerações nos abrigos facilitem a disseminação da influenza. “É uma enfermidade de fácil transmissão, que passa pela respiração, e temos muita gente aglomerada e no frio, o que diminui a defesa ciliar. Brônquios, traqueias, grandes tubos, que têm um movimento de defesa que paralisa com o frio”, detalha.
Marinho afirma que a ampliação na campanha de vacinação é necessária para evitar um colapso no sistema de saúde. “Mesmo que a imunização contra a gripe não tenha efeito imediato, protege mais para frente.”
A presença de profissionais de saúde nos abrigos também é importante, segundo a pós-doutora. “Ter uma rotina de exames, pode ser com médicos, enfermeiras. Tentar antecipar o problema”, diz.
Uma estratégia é identificar quem está sob risco, como hipertensos e diabéticos, e evitar que o quadro piore e exija uma internação para desafogar hospitais.
Naime afirma que, num primeiro momento, uma das causas de elevação de doenças pode ser o fato de muita gente estar sem acesso à água potável. “A ingestão de uma água não apropriada gera risco de contração de diarreia infecciosa causada tanto por vírus quanto por bactéria, e também de hepatite A”, afirma.
Há também a possibilidade de haver uma elevação nos índices da raiva devido à atuação de bombeiros e voluntários nos resgates a animais.
Ele acredita que, após os alagamentos baixarem, os casos de leptospirose e hepatite A devem aumentar ainda mais.
“Agora a água está alta, mais diluída, menos concentrada. Daqui a pouco as pessoas vão voltar para suas residências, limpar a casa, e vai estar mais concentrada, com maior concentração de patógenos, mais fácil contaminação”, avalia.
Outro problema potencial são os casos de tétano, uma vez que os moradores irão reconstruir suas casas e podem se machucar e contrair a enfermidade.
Na previsão de Naime, daqui dois ou três meses pode haver um aumento mais significativo da dengue. “Vai ser muito difícil controlar todos os focos possíveis de aedes aegypti.”
Ele também chama a atenção para saúde mental. “O impacto psicológico vai ser muito grande, as pessoas perderam tudo e obviamente vai levar uma demanda muito grande de outras doenças.”
O fato de as enchentes terem atingido estruturas da saúde pública e os problemas em hospitais já são sentidos pela população.
Com suspeita de dengue, a atendente Indiara Ferreira, 31, passou mais de oito horas na madrugada de terça para quarta-feira (15) em um posto de saúde até conseguir atendimento para tomar remédios na veia e reduzir a febre e o mal-estar que sente há três dias.
Ao chegar em casa, sua filha Rafaele, de 9 anos, estava com 38,8 graus de febre, e ela teve que retornar ao hospital. Ambas fizeram exames, mas a divulgação do resultado é online e a casa delas está sem internet devido às enchentes que atingiram São Leopoldo, cidade que fica a 35 km de Porto Alegre.
Mãe e filha terão que pegar dois ônibus para retornar ao centro de saúde dois dias depois e esperar por mais algumas horas para ter novo atendimento e tratar o quadro de suspeita viral.
“O sistema já era horrível, agora não sei o que irá acontecer. Difícil imaginar que fique ainda pior, mas sabemos que é uma possibilidade real”, afirma Indiara.
MATHEUS TEIXEIRA / Folhapress