SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Depois de viajar desde o outro lado do mundo numa canoa-cobra, os tukanos avistaram a Baía de Guanabara e lá decidiram desembarcar. O Rio de Janeiro se tornou, muito antes da chegada dos europeus, a terra onde este povo indígena começou a sua história.
Não é por acaso, então, que Daiara Tukano fez uma série de pinturas inéditas retratando pontos do estado do Rio de Janeiro para uma exposição de sua obra recém-aberta no MAR, o Museu de Arte do Rio.
Ela desenhou em preto sobre tela branca, em meio a grafismos típicos da simbologia tukano, o Pão de Açúcar, na capital fluminense, e o morro Dedo de Deus, na região serrana, como uma homenagem à terra sagrada para a etnia.
Intitulada “Pamuri Pati – Mundo de Transformação”, a mostra no museu no centro do Rio apresenta mais de 70 obras de toda a carreira da artista e é sua maior exposição depois da realizada no Museu da República, em Brasília, no ano passado, reunindo pinturas, instalações e desenhos, alguns feitos há mais de dez anos.
Enquanto ajeita um montinho de rapé na palma da mão para fumar, Tukano conta que era importante montar uma retrospectiva para seus familiares conhecerem seu trabalho.
Ela justifica ao se referir ao que chama de “experiência de perda muito forte” –a morte do artista plástico makuxi Jaider Esbell, em outubro de 2021, momento no qual tanto ele quanto ela tinham obras expostas na 34ª Bienal de São Paulo, mostra central na difusão e no reconhecimento da arte feita agora pelos povos originários.
“Isso me doeu muito. Foi uma coisa que me deixou bastante chocada. Às vezes a nossa própria família não conhece a nossa arte. A gente vai embora e a família não entendeu nada daquilo”, ela afirma, com a voz quase embargada, minutos antes de tragar com uma espécie de cachimbo o pó de tabaco.
No MAR, uma das instalações mais impressionantes é formada por quatro grandes pinturas de pássaros importantes para várias comunidades indígenas da Amazônia, como o gavião real –a maior águia do mundo– e o urubu-rei. Atrás, as telas são forradas por penas coloridas artificialmente, já que os pássaros não têm plumas nos tons escolhidos pela artista.
A obra, que também esteve na Bienal de São Paulo, pende do teto e fica no alto do espaço expositivo, para passar a ideia de que as aves estão voando, segundo a artista. “Os pássaros são guardiões, protetores, como anjos. A intenção era fazer grande para mostrar essa dimensão deles.”
Visitar a exposição não é só uma experiência estética, mas também uma aula sobre a simbologia do povo tukano, estabelecido no estado do Amazonas junto à fronteira com a Colômbia, país em que também habitam. Se muito do que se vê pende para o figurativo –como as ilustrações de quatro metros de altura de mulheres em situações que aludem à maternidade e ao trabalho na roça–, outra parte é abstrata.
A série de pinturas com tinta acrílica “Hori”, como que saídas de um encarte de CD de new age, com seus padrões gráficos coloridos em neon que lembram mandalas, são talvez os trabalhos mais conhecidos da artista e ocupam duas das paredes da sala em longas fileiras na horizontal.
São grafismos que surgem das mirações vistas quando a artista está em transe depois de beber chá de ayahuasca. “É a visão do nosso sonho, mas não é só tomar ayahuasca, é você fazer parte de um povo”, conta Tukano, acrescentando que as geometrias também são pintadas nos corpos de membros da comunidade e desenhadas em peças de cerâmica.
Na língua tukano não há a palavra arte –o mais próximo disso é “hori”, que significa luz, cor, perfume ou desenho, de acordo com a artista. O nome desta série não deixa de ser uma provocação ao conceito ocidental e eurocêntrico de arte, “que vai se desenvolver dentro da construção dessa civilização que foi estabelecendo dinâmicas de poder”, diz ela. “O processo que a gente vai chamar primeiramente de colonialismo ou de imperialismo e hoje chamamos de globalização.”
Tukano fala meio como artista, meio como ativista. Ela nasceu em São Paulo, em 1982 –naquele final da ditadura militar, seu pai foi muito ativo no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas junto ao governo federal e ajudou na luta pela demarcação do território tukano, que só ocorreu no início da década de 2000, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Ela conta que aprendeu a andar e a nadar na aldeia, mas que ainda criança passou a viver na cidade. A artista se formou na Universidade de Brasília, onde deu aulas de arte, e nos últimos anos se tornou uma expoente da arte indígena contemporânea, ao lado de nomes como Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Gustavo Caboco Wapichana e Glicéria Tupinambá.
São artistas, ela afirma, que têm feito um trabalho para fortalecer não apenas o território físico de suas etnias, mas principalmente o território cultural. “Isso aqui”, ela diz, apontando para a exposição, “não se trata de uma mitologia, não se trata de decoração”.
“Não estamos aqui pela beleza ou pela raridade da coisa. Estamos aqui porque esse é o nosso mundo vivo, o nosso mundo presente. E pretendemos que ele também seja nosso futuro.”
PAMURI PATI – MUNDO DE TRANSFORMAÇÃO
Quando: Até 25 de agosto. De terça a domingo, das 11h às 18h
Onde: Museu de Arte do Rio – praça Mauá, 5, Rio de Janeiro
Preço: R$ 20; grátis às terças
Classificação: Livre
JOÃO PERASSOLO / Folhapress