A conciliação entre o trabalho fora de casa e os cuidados domésticos do lar e das pessoas dependentes, como filhos ou familiares idosos, ainda recaem quase que exclusivamente sobre as mulheres. É o que reflete os dados do IBGE, no ano de 2022, que apontam que as mulheres dedicaram, em média, 9,6 horas a mais do que os homens às tarefas domésticas. A jurista Regina Stela Corrêa Vieira, doutora pela USP e professora de Direito da Unifesp, explica que o cerne do problema está na divisão de tarefas contidas nas normativas sociais, nas quais as mulheres possuem mais responsabilidades.
Segundo a especialista, a sociedade carrega traços do machismo estrutural-histórico e atribui funções mais valorizadas aos homens, enquanto as mulheres são responsáveis pelas tarefas de cuidado no âmbito doméstico. “Essa divisão é naturalizada, como se os homens fossem destinados a serem empresários, políticos ou juízes, e as mulheres tivessem um dom nato de cuidarem da família e da casa”, afirma.
Para Regina, a problemática desse cenário reside na pressão social e acontecimentos rotineiros, que acabam sendo internalizados no dia a dia da mulher e perpetuando estereótipos de desigualdades.
Ela dá um exemplo: “Quando empresas perguntam às mulheres durante entrevistas de emprego sobre como elas planejam cuidar dos filhos e conciliar a rotina do trabalho, questões que são raramente direcionadas aos homens, estamos reforçando que a carga do cuidado do lar deve recair sobre elas”.
Essa desigualdade reflete em diferentes faixas etárias. “Mulheres entre 40 e 60 anos, por exemplo, muitas vezes têm que cuidar tanto de pais idosos quanto de filhos ainda dependentes, demandando uma atenção constante”, a professora explica.
Segundo dados do IBGE, desde cedo as meninas já dedicam mais tempo ao trabalho doméstico do que os meninos e essa disparidade aumenta ao longo da vida, chegando a uma média de quatro horas diárias para mulheres entre 20 e 60 anos, enquanto os homens dedicam, no máximo, uma hora por dia às mesmas tarefas.
A especialista também destaca a disparidade de gênero nos cuidados domésticos quando levados em conta os aspectos econômicos. “Nas classes sociais mais altas e médias, as mulheres têm acesso a recursos que lhes permitem delegar algumas responsabilidades, como contratar babás, empregadas domésticas e adquirir serviços externos, como alimentação pronta e matrículas em escolas particulares para os filhos.” Por outro lado, para as mulheres de classes sociais mais baixas e que possuem menos recursos financeiros, a dependência de redes de apoio informal, como vizinhos ou familiares, é ainda mais crucial para possibilitar sua participação no mercado de trabalho, o que, segundo a especialista, contribui para aprofundar essa desigualdade.
Responsabilidade exaustiva
Uma análise conduzida pela ONG Think Olga revelou que 86% das brasileiras sentem uma carga de responsabilidades exaustiva e 48% enfrentam dificuldades financeiras. Nesse cenário, 28% delas se colocam como únicas ou principais provedoras do lar, enquanto 57% das mulheres entre 36 e 55 anos têm a responsabilidade direta pelo cuidado de alguém.
Para lidar com essa realidade, Regina destaca a importância de políticas públicas que promovam uma redistribuição de tarefas domésticas e cuidado de dependentes mais equitativa, com o Estado desempenhando um papel central na implementação dessas medidas. “Ampliação de vagas em creches, extensão do horário de funcionamento dessas instituições, criação de restaurantes e lavanderias populares, além da expansão de equipamentos para o cuidado de pessoas com deficiência e acolhimento de idosos, são iniciativas importantes para reduzir a carga de trabalho”, assegura Regina.
No entanto, a especialista afirma que o preconceito ainda persiste, especialmente quando o assunto é licença-maternidade, o que cria disparidades nas responsabilidades e no reconhecimento entre homens e mulheres quanto a obrigações, dificultando a implementação de políticas que promovam a igualdade. “A conciliação entre trabalho e cuidados domésticos e familiares é um desafio complexo que exige mudanças estruturais na sociedade.”
Para a especialista, o cuidado de dependentes tem que ser visto como uma responsabilidade compartilhada por toda a sociedade. “A noção de que somos indivíduos autossuficientes é uma falácia, dependemos uns dos outros para sobreviver.” Regina ainda reconhece que essa interdependência é fundamental para valorizar o trabalho realizado por milhões de mulheres diariamente, sem remuneração. “Sem cuidado, não há formação de novas gerações, bem-estar nos lares, saúde ou alimentação adequada”, conclui.
**Texto de Jornal da USP