SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com um novo livro na praça, o economista Fabio Giambiagi, 62, afirma que a Previdência Social no Brasil ruma à falência. “A Reforma Inacabada – O Futuro da Previdência Social no Brasil” (Alta Books), escrito com Paulo Tafner, diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, é um manual de reformas necessárias para tirar o sistema da insolvência.
“Setenta anos de negligência fiscal, paternalismo estatal e déficit público na Argentina produziram Javier Milei, e hoje na Argentina todos os aposentados –inclusive quem ganha o mínimo– estão tendo perdas reais de remuneração de 25% ou 30%, o que é socialmente selvagem”, afirma Giambiagi, filho de argentinos.
Segundo ele, o Brasil precisa enfrentar o problema previdenciário o quanto antes. E faz um alerta ao governo Lula (PT): “Está na hora de quem se diz comprometido com as forças populares perceber que ou esse segmento ideológico se moderniza e prepara o país para os desafios do futuro ou o Brasil cedo ou tarde produzirá uma versão local de Milei que fará Jair Bolsonaro parecer um político equilibrado, prudente e sensato”.
No conjunto, os autores estimam um efeito no fluxo da ordem de 1,5% do PIB de redução do déficit previdenciário em 2050 em relação ao que se verificaria sem reformas. “Isso nos deixaria, daqui a duas décadas e meia, com um déficit praticamente igual ao atual. Seria uma grande conquista, à luz das tendências demográficas, que jogam contra o equilíbrio”, diz Giambiagi.
PERGUNTA – Quem está prestes a se aposentar hoje corre o risco de ficar sem o benefício nos próximos anos? E para os mais jovens, digamos, na faixa dos 30 ou 35 anos? Qual a perspectiva de acabarem sem seus benefícios se nada for feito a médio e longo prazos?
FABIO GIAMBIAGI – O Brasil é um país que, aos olhos dos brasileiros e do resto do mundo, é conhecido por não ter nenhum senso de urgência. Somos o país do “deixa estar para ver como é que fica”. Meu primeiro artigo sobre Previdência foi escrito em 1992. E a reforma só veio em 2019. Nesses 27 anos, eu fui chamado de tudo, de “não gostar de idoso”, “rei da eugenia” e outros qualificativos do gênero.
Por quê? Por propor que o país se preparasse com tempo para quando o futuro chegasse. Não nos preparamos. O que temos hoje? Um país que entre INSS e Loas [benefício de um salário mínimo para que tem 65 anos e renda familiar de um quarto do mínimo] gasta mais de R$ 1 trilhão e que, pelo declínio das outras despesas, não consegue prestar a seus habitantes condições dignas de vida em termos habitacionais, de segurança etc.
Ontem estava falando com uma amiga cuja filha é formada em neurociências numa das melhores universidades inglesas. A garota quer tentar a vida aqui, mas fazendo pesquisa nessa área provavelmente vai penar e acabará indo viver fora. São cérebros dos quais abrimos mão em atividades de ponta que seriam preciosas para o país. E por quê? Porque permitimos aposentadorias rurais aos 55 anos e benefícios assistenciais 50% maiores que em países como o nosso a um número muito maior de pessoas.
No Google você vai encontrar dezenas de artigos meus propondo mudanças para evitar que as pessoas se aposentassem aos 48 ou 49 anos, como acontecia antes da reforma. Mas não vai encontrar uma vírgula propondo reduzir o valor real das aposentadorias, porque entendo que preservar o valor real das aposentadorias é parte de um pacto civilizatório de convivência.
Porém, cabe a advertência: 70 anos de negligência fiscal, paternalismo estatal e déficit público na Argentina produziram Javier Milei, e hoje na Argentina todos os aposentados –inclusive quem ganha o mínimo– estão tendo perdas reais de remuneração de 25% ou 30%, o que é socialmente selvagem.
Essa história de querer mostrar os que defendem reformas como inimigos da população já deu o que tinha que dar. Está na hora de quem se diz comprometido com as forças populares perceber que ou esse segmento ideológico se moderniza e prepara o país para os desafios do futuro ou o Brasil cedo ou tarde produzirá uma versão local de Milei que fará Jair Bolsonaro parecer um político equilibrado, prudente e sensato.
Os senhores também propõem a redução de 3 anos para 1 na diferença de idade de aposentadoria de homens (65 anos hoje) e mulheres (62). No Brasil, as mulheres ganham menos que os homens no mercado de trabalho e têm a chamada dupla jornada. O fato de se aposentarem antes não é uma maneira de compensá-las?
F. G. – Não tem rigorosamente ninguém que não reconheça o esforço maior que incide sobre a mulher associado ao exercício de maternidade e paternidade. Em primeiro lugar, físico, e, em segundo lugar, financeiro. Porque muitas vezes o prejuízo financeiro que decorre do afastamento temporário –tem muitas mães que deixam de trabalhar durante dois, três anos– as prejudica na carreira.
Precisa ser idiota para não perceber isso. Então, não é que a gente se opõe ao benefício para a mulher. O que está em discussão é qual é a forma mais eficaz disso. Há dois pontos aí. Primeiro, faz sentido dar esse benefício para todo o mundo, inclusive para quem não foi mãe?
Aí alguém poderia dizer: “Não, mas a mulher que se casa e não tem filhos também tem dupla jornada de trabalho”. O Estado não tem nada a ver com isso. Isso é uma questão que ela tem que discutir com o marido para o cara se comportar direito.
É algo completamente diferente da maternidade, em que a pessoa tem o sacrifício do período da gravidez, de nove meses, e depois da criação do filho, principalmente nos primeiros anos. Mesmo assumindo que haja a necessidade de alguma compensação, o que que faz mais sentido? Dar essa compensação quando a pessoa mais precisa, nos primeiros anos, ou quando a mãe já é avó, aos 60 anos?
Estou envolvido num esforço de pesquisa para mergulhar especificamente em cada um dos grandes pontos da reforma que estamos propondo no livro. Nesse sentido, com o Otávio Sidone [Universidade de Brasília], escrevemos recentemente um artigo no qual aprofundamos esse assunto específico e propomos como compensação um aprimoramento do benefício pela maternidade, nos primeiros meses de vida da criança. Entendemos que a pura e simples mudança da regra de benefício de gênero de três anos é politicamente difícil.
Mas, se for entendida como parte de uma reavaliação da política em favor das mulheres, faria mais sentido. Estamos todos de acordo de que as mulheres precisam ser compensadas pelo ônus que representa para elas o esforço associado à maternidade.
O ponto-chave é qual a melhor forma de outorgar essa compensação: dando o benefício a todas as mulheres (incluindo a quem não é mãe) e 30 anos depois delas terem tido filhos, ou fazendo isso exatamente no período da vida em que elas mais precisam, e dirigido especificamente a quem acabou de ser mãe?
A ministra Simone Tebet (Planejamento) aventou a possibilidade de desvincular o reajuste do salário mínimo –que deve ter aumentos reais no governo Lula– dos benefícios previdenciários. Foi criticada dentro do governo. Mas dois terços dos benefícios variam de acordo com o mínimo; e um aumento de R$ 1 acarreta gasto adicional previdenciário de R$ 350 milhões. Como convencer governantes e a sociedade da necessidade da desvinculação?
F. G. – Disse dezenas de vezes e repito: a política de valorização do salário mínimo é a política social mais ineficiente do mundo. De cada R$ 100 aplicados no aumento das aposentadorias e pensões de um salário mínimo, apenas R$ 3 vão parar na mão dos 20% mais pobres. Eu não disse R$ 30. Eu disse R$ 3.
Deve ter uns 500 programas sociais que dão mais retorno do que isso. Por que não se pode mudar essa política? “Porque o presidente a considera uma marca registrada do seu governo”. Ok, mas é uma marca registrada por quê? Porque é só uma marca ou porque ele tem um compromisso primordial com os 20% mais pobres? Porque, se for isso último, é a política errada no momento errado para as pessoas erradas.
A ministra Simone Tebet disse que a Secretaria de Avaliação de Políticas Públicas irá avaliar qualquer política, menos a de valorização do salário mínimo. Isso não faz o menor sentido. É um contrassenso lógico.
Há 30 anos que estou nesse debate e até agora não consegui que ninguém me respondesse a uma pergunta singela: o que se pretende com o aumento do salário mínimo?
Combater o desemprego? Não, porque quem recebe salário mínimo não está desempregado. Combater a informalidade? Não, porque quem recebe o salário mínimo é formal. Combater a miséria? Mentira, porque quem recebe o salário mínimo não está entre os 20% mais pobres. Melhorar a distribuição de renda? Ok, mas que fique claro então que se está agindo no “meião” da distribuição de renda, não no grupo dos mais pobres.
Sabe quantos entre os aposentados e pensionistas que recebem o mínimo estão entre os 30% mais pobres? 9%. Sabe quantos estão entre os 30% mais ricos? 22%. A maioria está aí pelo meio. E, para cada R$ 1 que vai para os 30% mais pobres, há R$ 2,4 que vão para os 30% mais ricos.
Fundamentalmente porque há muita gente que está no segundo e terceiro décimo da distribuição de renda e tem uma aposentadoria ou pensão de um salário mínimo. É algo que, como política social, não faz o menor sentido.
Outros temas espinhosos são as aposentadorias rurais e a Loas, que prevê o benefício de um salário mínimo para que tem 65 anos e renda familiar de um quarto do mínimo. No meio rural, homens e mulheres se aposentam aos 60 e 55 anos, respectivamente. Os senhores estimam que, do déficit primário do INSS de 2,7 % do PIB em 2022, 40% se originaram no meio rural. Quais as mudanças sugeridas nesses dois pontos, Loas e rural?
F. G. – Especificamente sobre os rurais, a proposta é que a idade de aposentadoria dos homens nesse meio mude dos atuais 60 para 65 anos num processo de transição de 10 anos. No caso das mulheres, dependerá do diferencial por gênero. Se for mantido nos atuais 5 anos, a idade de aposentadoria seria elevada de 55 para 60 anos. Se cair, dependerá do tamanho do diferencial em relação aos homens.
No caso do Loas, estamos propondo uma elevação da idade de concessão do benefício para 70 anos num processo de transição de 20 anos, de modo a que em 2046 se volte à idade de 70 anos, que era requerida na primeira versão do Loas, que é de 1993. Ou seja, estamos propondo voltar, 50 anos depois, às regras originais do benefício.
RAIO-X
Fabio Giambiagi, 62
Tem graduação e mestrado na área econômica pela UFRJ. Atuou no Banco Interamericano de Desenvolvimento e no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Tem mais de 40 livros publicados sobre a economia brasileira. Atualmente, é pesquisador associado do Ibre-FGV.
FERNANDO CANZIAN / Folhapress