SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Quando recordarem a sociedade global do começo do século 21 daqui a uns 200 anos, será que os nossos descendentes vão nos comparar com os fenícios ou com os micênicos? A pergunta pode parecer estapafúrdia, principalmente para quem não está familiarizado com antigos povos do Mediterrâneo. Mas ela resume bem os diferentes destinos possíveis diante de um dos mais importantes colapsos civilizacionais da história, que pode trazer lições importantes para o presente, segundo o arqueólogo americano Eric Cline.
O pesquisador da Universidade George Washington, que já tinha analisado as possíveis causas desse desastre com o best-seller “1177 a.C.: O Ano em que a Civilização Entrou em Colapso”, acaba de voltar ao tema com uma nova obra. “After 1177 B.C.: The Survival of Civilizations” (Depois de 1177 a.C.: A Sobrevivência das Civilizações”) tenta entender como alguns impérios foram quase apagados do mapa no fim da Idade do Bronze, enquanto outros conseguiram suportar o tranco da catástrofe e até saíram fortalecidos dela. Os fenícios (do atual Líbano), mais versáteis, corresponderiam ao segundo caso, enquanto os micênicos (que viveram na Grécia), menos flexíveis, seriam um exemplo do primeiro cenário.
“O mundo deles mudou”, declarou Cline, 63, em entrevista ao site americano Slate. “Mas, ao fazer toda a pesquisa para o livro, ficou claro para mim que foi tanto um colapso quanto uma transformação. Tudo depende de onde você está observando o processo e de quem você está observando.”
A data altamente precisa usada nos títulos vem de um monumento egípcio da época do desastre, mas é claro que o processo não foi tão pontual, tendo se estendido por várias décadas na virada do século 13 a.C.. O colapso do fim da Idade do Bronze, que caracterizou esse período, corresponde a um processo de destruição de inúmeras cidades, palácios e até reinos inteiros, num arco que vai da Grécia ao atual Iraque, afetando até o poderoso Egito dos faraós.
Alguns povos nunca se recuperaram. É o caso dos hititas, fundadores de um império na atual Turquia que tinha durado centenas de anos, ou da cidade-Estado de Ugarit, no norte da Síria. O Egito perde o controle imperial que tinha sobre os atuais territórios de Israel e da Palestina e se fragmenta politicamente. Na Grécia, o esplendor dos palácios micênicos vem abaixo, e até a tecnologia da escrita desaparece durante séculos. E as conexões comerciais e diplomáticas que existiam entre essas potências também ficam muito enfraquecidas.
Cline defende que o processo por trás do rastro de destruição tem raízes multifatoriais, envolvendo tanto fatores naturais (terremotos, grandes secas) quanto sociais (conflitos internos e migrações em massa). A mudança climática parece ter sido particularmente importante, com a chegada de condições mais áridas no Mediterrâneo Oriental que podem ter se estendido por séculos.
No novo livro, o arqueólogo discute dados arqueológicos recentes que mostram, ao mesmo tempo, a importância desses fatores climáticos e o fato de que os efeitos do colapso podem ter sido menos catastróficos do que se imaginava até agora. Em vez de uma “Idade das Trevas”, a mudança foi mais gradual, e a retomada do comércio marítimo pode ser vista já no século 11 d.C. em partes da Grécia, por exemplo.
Além disso, povos como os fenícios e alguns dos habitantes de Chipre parecem ter se aproveitado da situação caótica para expandir suas viagens mar adentro, achando novas fontes de metais preciosos em lugares como a Itália e a Espanha e popularizando a tecnologia do ferro, antes muito restrita.
A diferença entre esses sobreviventes por excelência e povos como os micênicos, segundo o pesquisador, envolveria elementos como estruturas políticas mais descentralizadas, menos dependência de matérias-primas externas e um maior interesse pela inovação e experimentação tecnológica. Já os grupos com excessiva centralização do poder e pouco interesse em explorar novas possibilidades econômicas tiveram mais dificuldades para suportar a crise.
A capacidade de adquirir capacidades de resiliência também ajudaria a produzir um mundo pós-Idade do Bronze com importantes inovações políticas e culturais, como as cidades-Estado gregas com participação popular nas decisões e o monoteísmo (adoração a um só deus) dos reinos israelitas, sem os quais a cultura ocidental não teria ganhado a feição que tem hoje.
Os problemas enfrentados pela produção e distribuição de bens em escala global durante a pandemia de Covid-19 indicam que fenômenos parecidos poderiam afetar o mundo de hoje, argumenta Cline na conclusão do livro -para não falar dos riscos associados à emergência climática. “Seria arrogância da nossa parte achar que estamos imunes a algo assim”, diz ele.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress