Selena Gomez vive primeira-dama do tráfico e canta em espanhol em ‘Emilia Pérez’

CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Música é parte fundamental dos dois filmes da competição pela Palma de Ouro que ganharam exibição no Festival de Cannes neste sábado (18). De um lado, Jia Zhang-ke e seu “Caught by the Tides”, que explora canções chinesas ao tecer uma crônica de seu país natal. Do outro, Jacques Audiard e “Emilia Pérez”, um musical com tudo o que o gênero tem direito.

Além da agenda e da musicalidade, os filmes também se esbarram por terem entregue, até aqui, as melhores atuações femininas desta edição. No primeiro caso, Tao Zhao, musa do cinema de Zhang-ke, é obrigada a trabalhar o olhar com dedicação, já que sua personagem passa o filme em silêncio. Como de praxe, está maravilhosa.

No segundo, Zoe Saldaña se põe a dançar e a cantar, mostrando que é uma atriz muito mais completa do que seus vários blockbusters fazem pensar. Mas é a colega de elenco, a espanhola Karla Sofía Gascón, quem rouba a cena. Se vencer o prêmio de atuação em Cannes, como críticos já estão dizendo ser possível, traria a primeira vitória de uma atriz trans no festival.

Elas se juntam a Selena Gomez no exagerado e melodramático musical de Audiard, falado e cantado em espanhol. A cantora vive a mulher da personagem-título, vivida por Gáscon, uma líder do tráfico mexicano que forja a própria morte para realizar uma transição de gênero.

O interessante do filme é que ele expõe, mais uma vez, que esta competição de Cannes está sendo muito feminina, apesar do número diminuto de diretoras mulheres. Depois que faz a transição, Emilia Pérez larga o crime e tenta apagar os erros do passado, fundando uma ONG que busca desaparecidos pela violência do tráfico.

É como se ao abraçar seu feminino, ajudasse o mundo hipermasculinizado a ser um lugar melhor. Uma mensagem que, como o resto do filme, pode soar piegas. Mas tudo bem, porque Audiard está ciente do ridículo ao qual o gênero com que trabalha se permite.

Há momentos constrangedores, em especial os números musicais de Selena Gomez, que destoam do resto por terem carinha de clipe de música pop, mas no geral a trilha sonora flui com naturalidade.

Em “Caught by the Tides” –algo como pego pelas marés-, é o tempo o inimigo do amor. Jia Zhang-ke fala novamente sobre ruptura, numa trama que remete muito a seu último longa de ficção, “Amor Até as Cinzas”.

Em especial porque o espaço-tempo de ambos se sobrepõe. Ao acompanhar casais pelas duas primeiras décadas deste século, os filmes funcionam também como uma crônica das mudanças aceleradas da sociedade chinesa no período.

Aqui, vemos a China no começo dos anos 2000, a partir de Qiaoqiao -vivida pela musa de Zhang-ke, protagonista de seus principais filmes, Tao Zhao- e Bin -papel de Zhubin Li, outro parceiro recorrente-, numa relação frágil de amor. Mas ele quer tentar a vida em outra província, e deixa a mulher para trás. Suas tramas correm em paralelo, até o inevitável reencontro nos anos de TikTok.

Como a comparação é inevitável, vale dizer que “Caught by the Tides” é menos potente que “Amor Até as Cinzas”, mas embora tenha temas e um desenvolvimento parecidos, não soa repetitivo. Zhang-ke é um cronista de sua China natal, e há muito tempo aproveita os dramas intimistas de suas histórias para mostrar, ao fundo, um país em transformação incessante.

Também foi assim com “As Montanhas se Separam” e “Em Busca da Vida”, este ainda próximo do filme exibido agora em Cannes por também ter um drama envolvendo a barragem das Três Gargantas como propulsor de partes da história.

Mas Zhang-ke não acompanha as mudanças temporais de forma artificial. Ele de fato gravou o filme ao longo das duas últimas décadas, e usa habilmente a fotografia de “Caught by the Tides” para mostrar isso. A proporção da tela e a qualidade da imagem, que vai da textura do analógico à lisura do digital, não são, portanto, mera escolha estética.

Soa desnecessário, porém, o recurso de legendas para localizar o espectador no espaço-tempo. Marcas temporais mais discretas que observamos ao fundo, como uma festa de comemoração pela escolha de Pequim para sediar as Olimpíadas de 2008 e as orientações sanitárias de uma comissária de bordo de anos recentes, já cuidariam bem disso.

“Caught by the Tides” é também uma crônica da própria trajetória de Zhang-ke, numa reciclagem de técnicas e temas. Aos 53 anos, ele se firmou como um dos principais nomes do cinema chinês e, com o novo filme, tenta vencer a Palma de Ouro pela sexta vez. Em 2013, recebeu o prêmio de roteiro por “Um Toque de Pecado”.

Querido pelos franceses, ele tem uma nova chance agora. Ao olhar para os longas da competição que já foram exibidos nessa primeira parte do Festival de Cannes, é razoável dizer que o chinês deve sair da Riviera Francesa com mais um prêmio. Talvez não o maior deles, assim como “Caught by the Tides” também não é seu maior filme.

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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