CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Musa de “Ghost”, Demi Moore fez das tripas coração e fez jorrar sangue das telas do Festival de Cannes na noite deste domingo (19), em que apresentou “The Substance”, ou a substância.
Sob a direção da francesa Coralie Fargeat, Moore narrou uma história que é provavelmente muito pessoal, ao encarnar uma atriz celebrada entre os anos 1980 e 1990 que, quando chega na casa dos 50 anos tão temida pelas mulheres de Hollywood cai em ostracismo.
Demitida do programa de TV que apresentava sob os argumentos machistas e etaristas do chefe, sua personagem entra numa crise de imagem, deixando de ver beleza num rosto que, até então, estava exposto numa enorme moldura na sala de sua casa.
Em desespero, ela encontra uma misteriosa farmacêutica que oferece a ela o elixir do rejuvenescimento. Ela o toma e, de dentro de seu corpo, vê sair uma versão mais jovem de si, interpretada por Margaret Qualley, que com sua beleza logo conquista o país.
Enquanto uma versão mais velha fica em casa, a outra sai para viver uma série de excessos, como se “The Substance”, ou a substância, fosse um “Retrato de Dorian Gray” moderno e feminista. Aqui, também, a juventude e a beleza são absolutamente viciantes.
Fargeat está em terreno conhecido, repetindo a fórmula de denúncia do patriarcado escrita em sangue, como fez em “Vingança”, que a fez ganhar notoriedade há sete anos. No filme de agora, os homens também são todos machistas ou covardes. Asquerosos, não sofrem com o passar do tempo da mesma forma que as mulheres.
Enquanto o chefe vivido por Dennis Quaid não se cuida, é indisciplinado, abusivo e sem educação, e nem por isso perde o emprego, não há misericórdia para a protagonista, sempre preocupada em como se apresenta ao mundo, tanto em relação à aparência, quanto à obrigação em agradar sempre.
“The Substance” causa repulsa, também, por abraçar violentamente o body horror, subgênero em que o terror, gráfico, é criado a partir da violação do corpo. Nem por isso deixa de ter seus momentos engraçados, num humor provocativo. É das tramas mais fortes apresentadas em Cannes até aqui.
Eduard Limonov, por sua vez, é um homem perturbado, mas por outros motivos. Do nascer artístico à morte política, acompanhamos o russo na biografia que Kirill Serebrennikov exibiu na competição pela Palma de Ouro também neste domingo.
Protagonizado pelo inglês Ben Whishaw, “Limonov: The Ballad of Eddie”, ou a balada de Eddie, entrega o que é provavelmente o trabalho mais americanizado de Serebrennikov ele até se deixa levar pelo artifício do inglês falado com sotaque carregado, mesmo em momentos em que o público deve supor que todos na cena estão, na verdade, falando russo.
O cineasta, desafeto de Vladmir Putin, já trouxe a Cannes “O Estudante”, “Verão”, “Petrovs Flu” e “A Esposa de Tchaikovsky”, este há dois anos, provocando a homofóbica pátria-mãe com um retrato da homossexualidade do compositor. Deve provocar de novo, não só pela cena em que um jovem Limonov pede a um morador de rua que transe com ele.
Dissidente político, o escritor integrou a oposição até os anos 2000, mas mudou de lado a partir da anexação da Crimeia, instigando que os russos lutassem contra a Ucrânia, mesmo tendo crescido em território ucraniano. Morreu há dois anos, sem ver a materialização da guerra.
Mas “Limonov”, o filme, está mais interessado no gênio obsessivo e atormentado do poeta do que em sua face política. Ela está presente de forma significativa, mas o filme só alça mesmo voo quando o acompanhamos em momentos mais intimistas, seja em suas batalhas internas ou na relação intensa com uma de suas amantes.
Depois de descobrir que Elena tem namorado, após uma noite de amor, por exemplo, o Limonov de Ben Whishaw corta os pulsos em frente à porta de sua casa, e dança pelos corredores espalhando sangue nas paredes até desmaiar.
Nessas explosões de irracionalidade, Whishaw brilha, mas não só. Nos momentos mais contidos, em especial na velhice do escritor, o ator britânico captura maneirismos e gestuais de maneira convincente, sem ceder à caricatura.
Tanto seu trabalho quanto a direção de Serebrennikov são hábeis ao capturar as contradições e a instabilidade de Limonov, um sujeito difícil de traduzir. A sinopse do filme acerta na descrição, ao falar na biografia de alguém que foi “vagabundo em Nova York, uma sensação na França e um anti-herói político na Rússia”.
Mas talvez não seja o filme certo para o momento de Guerra da Ucrânia, e premiá-lo pode passar a mensagem errada. “The Substance”, por outro lado, deve se relacionar com o júri de Greta Gerwig, para além de seus méritos cinematográficos.
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress