SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A reconfiguração do mercado de gás natural após o início da Guerra da Ucrânia derrubou pela primeira vez o setor na Rússia, líder inconteste do setor até a invasão de 24 de fevereiro de 2022.
Nesta terça (21), o Kremlin determinou que a gigante estatal do setor, a Gazprom, não distribua dividendos neste ano. É uma medida inaudita, e vem na esteira do primeiro prejuízo da empresa neste século, um tombo de US$ 6,9 bilhões em 2023.
O mais recente registro negativo havia sido em 1999, na esteira da implosão econômica da Rússia na crise do ano anterior. Desde então, a Gazprom ascendeu para o posto de principal empresa mundial do setor de gás natural, o qual ainda domina em termos de reservas (20% do mundo) e produção (10%, ainda que ociosa).
A queda em 2023 foi de 40% ante 2022, quando houve um pico no preço do gás devido à guerra e a Europa ainda não havia conseguido se livrar da dependência russa do produto, baseada principalmente na boa relação de então entre Moscou e Berlim.
Apesar de ser um combustível fóssil, o gás natural é uma matriz mais limpa do que outras, como petróleo e carvão embora sua denominação como “verde” pela União Europeia em 2022 seja contestada como uma forma artificial de acelerar o cumprimento de metas de emissão de carbono.
O governo de Vladimir Putin tem motivos para se preocupar, dado que os informes públicos da empresa sobre perspectivas para 2024 e 2025 indicam perdas ainda maiores. A Gazprom bancou, por meio de impostos, taxas e licenças, cerca de 10% do orçamento federal da Rússia.
Com os gastos militares batendo em 8,7% do PIB neste ano, segundo o presidente russo, é dinheiro que fará falta, ainda que não chegue a configurar o coração da máquina de guerra de uma economia cada vez mais militarizada, como a escolha de um tecnocrata keynesiano para ministro da Defesa provou na semana passada.
Nesse sentido, o melhor desempenho do setor de petróleo compensa algo, já que ele é responsável por 30% do orçamento. Mesmo sob sanções na Europa, o desvio da produção para países como Índia e China foi eficaz. Mesmo o Brasil contribui na conta, sendo um dos principais destinos do diesel russo hoje.
Com o gás é diferente. A Europa respondia por 40% do mercado do produto russo, vindo em forma gaseificada por meio do sistema gêmeo Nord Stream (Báltico), a menina dos olhos da antiga aliança entre a Alemanha e a Rússia, e por dutos por meio de Belarus e da Ucrânia.
Com a guerra, os países europeus buscaram fontes alternativas, principalmente o gás natural liquefeito vindo do golfo Pérsico. Para complicar, o moderno Nord Stream teve 3 de seus 4 ramais destruídos num misterioso atentado no fim de 2022, em que ambos os lados se responsabilizam.
A Rússia também fez cálculos errados, cortando o suprimento europeu na esperança de ver o preço chegar às alturas. O ex-presidente Dmitri Medvedev chegou a falar em US$ 5.000 por mil m3 em 2022, só para ver o valor cair a um décimo disso na virada de 2024.
Hoje, apenas um ramal está operando, por meio da Ucrânia, uma cortesia do tempo em que os países eram parte da União Soviética e que nem a guerra interrompeu Kiev, quando o fluxo era na capacidade máxima, tirava US$ 3 bilhões anuais em pedágio. Agora, há a expectativa de que os ucranianos cancelem o acordo.
Outra ironia é o fato de que esse problemão para Putin não decorre das sanções ocidentais que, em grande medida, driblou: a União Europeia não proíbe a compra de gás russo, apenas buscou limitá-la. “Há uma tempestade formada em várias frentes contra a Gazprom”, disse por mensagem de texto a analista especializada em energia Tatiana Stoinova, de São Petersburgo.
O maior volume de gás liquefeito no mercado, um fenômeno ligado também ao aumento da produção dos agora líderes mundiais Estados Unidos e de países como o Qatar, ajudou também na queda do lucro da Gazprom. Os preços mundiais, após saltarem com os efeitos da guerra, caíram e estão estáveis em patamares baixos.
Tanto no mercado anglo-americano quanto na bolsa de futuros holandesa, referências, a curva é a mesma com unidades diferentes. Na Europa, por exemplo, os mil m3 estavam a 500 antes da guerra. Viram um pulo para 1.870 no estouro do conflito, escalando a 3.380 em agosto de 2022. Agora, estão em 330.
A mudança climática, quem diria, ajudou: os dois invernos mais quentes registrados na Europa desde a guerra permitiram menor consumo residencial e, hoje, os estoques de gás do continente estão praticamente cheios, afastando temores anteriores.
Diferentemente do petróleo, cujos navios basicamente mudaram de rota rumo ao Oriente, com o gás é preciso uma infraestrutura custosa e de implementação lenta. Aí, os olhos de Moscou se voltam para a China, sócia na “parceria sem limites” reiterada na visita de Putin ao líder Xi Jinping na semana passada.
O encontro, contudo, não trouxe ainda novidades sobre o principal desejo russo: ver os chineses sendo o destino de seu gás. Hoje, o gasoduto Força da Sibéria usa apenas metade de sua capacidade instalada, respondendo por apenas 5,2% da demanda do produto em 2023 por Pequim.
Em 2023, os russos venderam 22,7 bilhões de m3 de gás para os chineses, ante 180 bilhões de m3 que enviavam para a Europa até a guerra. Para piorar, o fazem com um desconto de 20% para os aliados.
O projeto para dobrar a capacidade total do projeto com um novo ramal, uma obra de 2.600 km na Ásia Central, com muito otimismo só virará realidade comercial em 2030. “A China tem agenda própria, não irá substituir a Europa tão cedo”, diz Stoinova.
Já o investimento anunciado da Gazprom no promissor mercado do produto liquefeito esbarra, aí sim, nas sanções. Para equipar as estações de liquefação, no qual o gás é resfriado a mais de 160 graus Celsius negativos, é preciso um maquinário do qual a Rússia não dispõe e o Ocidente não vai fornecer com a guerra em curso.
IGOR GIELOW / Folhapress