‘No momento de dor, a arte é o que te salva’, diz Roseana Murray, escritora atacada por cães no RJ

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “A primeira vez que me vi no espelho, meu rosto estava inchadíssimo e com cicatrizes horríveis. Foi um grande susto. Mas depois, quando pude ver meu corpo todo, eu me aceitei de cara, porque eu já tinha fabricado ‘O Braço Mágico’ na minha cabeça”, diz a escritora e poetisa Roseana Murray, 73.

No início de abril, a escritora foi atacada por três pitbulls enquanto caminhava pelo bairro onde vive em Saquarema, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, e teve um braço e uma orelha arrancados. Agora ela se prepara para o lançamento do livro inspirado no episódio, previsto para 15 de agosto.

“Revelei a ideia quando surgiu no CTI [Centro de Terapia Intensiva], ainda no hospital, mas não achava o tom certo para o livro. Isso só aconteceu quando tive contato com meus dois netos. Eles me inspiraram. E quando cheguei em casa, depois da alta, corri para colocar no papel”, disse a escritora, que desenvolveu o projeto em menos de um mês após o ataque.

“É um texto simples, curto, mas que me ajudou demais. Fala sobre uma avó que conta para os netos que teve um acidente e perdeu um braço. Mas, com poesia, ela transforma o membro que está faltando em um braço mágico que fará novas e belas coisas”, sintetiza Murray.

“Sinto que os meus netos Luiz, de 14 anos, e a Gabi, de 10, só queriam ver que eu estava viva. Nem perguntaram muito, só ficaram olhando, e acho que foi realmente tranquilo para eles. E essa reação deles só podia me inspirar”, contou.

A lista das novas e belas coisas feitas pelo “braço mágico” da avó escritora está só começando. Também no hospital, a autora escreveu parte de uma coletânea de poemas para adultos sobre anjos.

“Essa coletânea sobre anjos conversa sobre o questionamento existencial. É um tom para adultos. Eu já havia começado antes do acidente, escrevi um texto ainda no CTI e sigo trabalhando nisso.”

Sinto que os meus netos só queriam ver que eu estava viva. Nem perguntaram muito, só ficaram olhando, e acho que foi realmente tranquilo para eles. E essa reação deles só podia me inspirar

escritora

Entre os projetos antigos e inéditos Murray destaca a retomada de seu clube de leitura e anuncia o sarau que irá promover no Dia dos Namorados (12 de junho) no Hospital Estadual Alberto Torres, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde ficou internada.

A escritora passou 13 dias internada na unidade de saúde e saiu aplaudida pela equipe médica e demais funcionários. “Eu saí mais amorosa, mais compassiva, mais aberta para doar e receber amor porque foi muito amor que eu recebi.”

Foi ali, segundo Murray, que ela começou a aprender a ser canhota —e segue treinando todos os dias.

“A gente pensa na potência que é o amor como força transformadora. Naquela condição eu comecei a comer, escovar os dentes, fazer tudo com a mão esquerda. A escrita com a mão é como de criança, mas está melhorando. Eu vou ser canhota, em tudo”, afirmou.

Para o sarau no mês que vem, Murray ganhou das editoras que publicaram seus títulos antigos cerca de 300 livros que serão distribuídos para os funcionários do hospital. “Estou rubricando esses livros todos com minhas iniciais com a mão esquerda”, disse.

Sobre o tratamento, a autora contou que ainda precisa voltar ao hospital com frequência para cuidar dos curativos, e assim cultiva o relacionamento com as equipes.

“Além da orelha, eu coloquei duas próteses no quadril, uma em cada lado. Tenho também quatro curativos de feridas grandes e o meu ‘toco’, como costumo chamar o que sobrou do meu braço”, disse, antes de contar sobre os traumas que ainda sente na pele.

“Tenho dores terríveis no braço fantasma. Sinto como um choque, é uma dor intensa o tempo todo, assim como ocorre nas pernas, onde estão alguns dos ferimentos. Mas estou trabalhando isso com os remédios, que ajudam a diminuir a frequência da dor, e psiquiatra.”

O trauma também se manifesta em certa insegurança de sair na rua. “Só saio de casa para entrar no carro e ir para o hospital. Ainda não saio na rua porque fico com medo de cair e magoar os ferimentos.”

Questionada sobre a possibilidade de mudar de casa, Murray é categórica: “Deus me livre”.

“Olha esse paraíso”, disse, apontando para o seu quintal. Nesse momento da entrevista, realizada por vídeo, a escritora encoraja os primeiros passos sozinha no local onde tudo aconteceu naquela manhã de 5 de abril e sai no portão de casa, quando acaba avistando a residência vizinha onde ficavam os três pitbulls que lhe atacaram.

“Eu nunca mais vi os meus vizinhos, às vezes eu escuto barulho na casa, mas não sei se estão aqui, e ninguém me procurou”, disse, voltando para dentro de sua casa.

A gente precisa fazer valer a legislação sobre os pitbulls no Brasil. Desde que eu me acidentei, vi muitas notícias sobre esse tipo de ataque. É um caso que precisa ser visto

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Os cachorros estão em um abrigo da prefeitura. Já as três pessoas responsáveis pelos animais chegaram a ser presas, mas respondem ao processo em liberdade.

“Eu acho que não adiantaria nada se eles fossem presos. O que a gente precisa fazer é valer a legislação sobre os pitbulls no Brasil. Desde que eu me acidentei, vi muitas notícias sobre esse tipo de ataque. É um caso que precisa ser visto”, afirmou.

Sobre as lembranças do acidente, Murray disse que as cenas surgem como flashes, mas que não se prende a isso.

“Tenho memória fragmentada sobre o que aconteceu, mas não me perturba. Eu saí do trauma, acho que com a história do braço mágico eu consegui dar a volta por cima”, disse. “No momento de muita dor, a arte é o que te salva. Não é um clichê, é uma verdade. A literatura salva e precisa ser um direito de todos neste país.”

Tenho memória fragmentada sobre o que aconteceu, mas não me perturba. Eu saí do trauma, acho que com a história do braço mágico eu consegui dar a volta por cima

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Entre os projetos futuros, o mais importante, segundo Murray, é aproveitar o presente.

“Daqui para frente os anos não são tantos, e eu quero ver meus netos crescerem, quero escrever muitos livros, não tenho muito tempo a perder”, afirmou a poetisa. “Eu não chorei em nenhum momento diante do que aconteceu, só agradeci pela vida.”

ALÉXIA SOUSA / Folhapress

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