SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em “Quarto de Despejo”, a escritora Carolina Maria de Jesus escreve que a fome deixa tudo amarelo. Pássaros, árvores e até mesmo o céu. Na exposição “Arte Subdesenvolvida”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, a fome ganha outros matizes. Na pintura “Enterro”, de Portinari, ela é azul, branca e preta.
Pelas mãos de Abelardo da Hora, é tridimensional e feita de ferro. Em “A Fome e o Brado”, o artista plástico esculpiu uma família de corpo esquálido, ossos protuberantes e expressão consternada. Atrás dela, desponta uma mão com a palma estendida para o alto como se pedisse ajuda de Deus.
Anna Maria Maiolino, por outro lado, fez da fome um monumento. Com um laço preto, a artista uniu um saco de feijão a um saco de arroz – alimentos que são a base da dieta do brasileiro, mas que faltam na mesa de milhões de pessoas.
De acordo o IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil tinha quase 64,2 milhões de pessoas vivendo em domicílios classificados com algum grau de insegurança alimentar em 2023, de leve, moderada a grave.
“Chamar a obra de ‘Monumento à Fome” é uma forma de gritar, dar visibilidade a esse problema e de dizer: ‘Olha, ela está aqui”, diz Anna Maria, que foi laureada com um Leão de Ouro na última Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra.
A peça também pode ser vista sob outro ângulo. Estátuas e obeliscos são erguidos para eternizar eventos e personalidades, mas acabam banalizados à medida que se misturam à paisagem urbana. A insegurança alimentar está tão presente na rotina do Brasil que por vezes passa despercebida, tal como um monumento.
“A gente sabe sobre a fome, mas faz de conta que não existe. Mas ela existe desde os tempos mais remotos. Por essa razão, vejo a arte como uma forma de exorcizar, por meio da poética, questões que afligem a humanidade.”
Em “Arte Subdesenvolvida”, essas questões dizem respeito à pobreza e à desigualdade econômica que marcam a história do país. Com cerca de 130 peças produzidas por diferentes artistas entre 1930 e 1980, a mostra ocupa quatro andares do CCBB e dá ênfase a trabalhos de cunho social, num contraponto à arte concreta –mais preocupada com a abstração das formas do que com o engajamento da política.
“Diante da percepção do subdesenvolvimento, a gente cria uma arte que se pretendia desenvolvida, ou seja, uma releitura da arte construtiva europeia”, diz Moacir dos Anjos, curador da exposição, acrescentando que esse registro acabou se tornando hegemônico. “Trabalhos concretos e neoconcretos são incríveis, mas eles colocaram uma sombra sobre outras formas de reagir ao subdesenvolvimento.”
Esse conceito ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, mas foi paulatinamente substituído nos livros de geografia e nas páginas dos jornais pela ideia de país em desenvolvimento ou emergente.
Moacir, porém, considera que essas classificações são eufemismos que escondem os entreves socioeconômicos de nações pobres. “Pensar o Brasil como subdesenvolvido, e não como um país em desenvolvimento ou emergente, talvez seja uma forma contraditória e paradoxal de resistir à condição de carência.”
Quem anda pelos corredores da mostra nota que a arte se apropriou do termo subdesenvolvido para transformá-lo de uma só vez em denúncia e em projeto estético. Isso fica evidente na sala expositiva intitulada “Tem gente com fome”, localizada no quarto andar do CCBB.
Além de obras de Portinari e Abelardo da Hora, o local abriga as primeiras edições de livros como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, e “Capitães da Areia”, de Jorge Amado.
São livros que fizeram um retrato do subdesenvolvimento antes mesmo de o conceito se tornar amplamente difundido. É o que o crítico literário Antonio Candido chamou de pré-consciência do subdesenvolvimento.
O público encontrará ainda fotografias das secas que castigaram o Ceará entre o século 19 e o começo do século 20. Para fugir das estiagens, milhares de pessoas migraram para Fortaleza, onde eram vistas com repulsa e tratadas como um problema a ser evitado.
Por isso, o poder público construiu campos de concentração em seis cidades para esconder dos olhos da elite uma população que chegava à capital doente e faminta. De acordo com dados oficiais, 73.918 pessoas foram detidas, muitas das quais morriam nos campos e eram enterradas em valas comuns. Quem sobrevivia era submetido a trabalhos forçados.
Para o cineasta Glauber Rocha, a fome era um elemento tão estruturante na sociedade brasileira que formava uma estética própria. É a chamada estética da fome, conceito que dá nome à outra sala expositiva. Nela, estão fixados em um varal de madeira parangolés de Hélio Oiticica. Nos tecidos, é possível ler: “Seja Marginal, Seja Herói”, “Estamos Famintos” e “Incorporo a Revolta”.
A mostra também coloca em evidência obras sobre o subdesenvolvimento produzidas a partir de 1968, período em que a violência da ditadura militar se exacerbou com a assinatura do AI-5. Esses trabalhos estão na sala intitulada “O Brasil é o meu abismo”, frase do cineasta pernambucano Jomard Muniz de Britto.
Nesse módulo, algumas das obras funcionam como uma resposta ao ufanismo ditatorial que escamoteava as contradições do Brasil.
É o caso da música “O Seu Amor” na voz dos Doces Bárbaros, banda formada por Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Os versos da canção repetem quase como um mantra: “Ame-o e deixe-o livre para amar”. É uma contraposição à dicotomia do slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, propagandeado pela ditadura.
Na sala, também vemos obras que servem de metáfora para o desespero dos anos de chumbo. Exemplo disso é uma fotografia da série “Fotopoemação”, de Anna Maria Maiolino, em que a artista aparece prestes a cortar a própria língua.
Há ainda “Baba Antropofágica”, trabalho no qual Lygia Clark expele pela boca uma longa linha de costura que enreda não apenas a artista, mas quem está em volta.
Moacir, o curador da mostra, diz que essas obras remetem à abjeção, conceito psicanalítico em que o corpo rejeita e expulsa elementos que o constituem. Nessa perspectiva, o próprio subdesenvolvimento pode ser visto como um fenômeno abjeto. Se por um lado estrutura as dinâmicas sociais do Brasil, por outro provoca repulsa e ojeriza.
Não à toa, o nome da mostra gerou estranhamento. “Será que ‘Arte Subdesenvolvida’ não é uma coisa meio degradante?”, questionaram o curador, que se manteve firme na escolha. “É subdesenvolvida não por ser uma arte menor, mas sim porque é uma resposta a uma condição de subdesenvolvimento.”
Uma dessas respostas está exposta no átrio do CCBB, onde há uma instalação do artista visual Randolpho Lamonier. Por meio de estandartes multicoloridos, a obra enuncia os sonhos de consumo de trabalhadores entrevistados pelo artista. Voltar para a terra natal e comprar a casa própria apareceram de forma recorrente.
“Alguns sonhos são muito duros por revelar um nível de carência brutal”, diz Lamonier. “Para a classe trabalhadora, parece que conquistar o básico ainda é um sonho quase impossível.”
ARTE SUBDESENVOLVIDA
Quando: Todos os dias, das 9h às 20h, fechado às terças-feiras
Onde: CCBB São Paulo – Rua Álvares Penteado, 112 Centro Histórico
Preço: Grátis
MATHEUS ROCHA / Folhapress