BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a compra de um medicamento considerado estratégico para o SUS (Sistema Único de Saúde) mobiliza interesses de empresas brasileiras e estrangeiras e opõe órgãos públicos, como o governo federal e o TCU (Tribunal de Contas da União).
O medicamento é a imunoglobulina, feito à base de plasma sanguíneo e que pode ser usado no tratamento de diversas doenças, entre elas a Aids e outras imunodeficiências.
A aquisição que está sob disputa pode ultrapassar a cifra de R$ 2 bilhões.
A briga acontece, sobretudo, pela possibilidade ou não de o Ministério da Saúde comprar os medicamentos em licitação com fabricantes que não têm produtos registrados no Brasil pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
As empresas sem esse registro, que são estrangeiras, argumentam que pode haver uma economia de aproximadamente R$ 1 bilhão na compra. Já uma empresa brasileira questiona a capacidade das estrangeiras de entregarem um produto de forma segura para abastecer o SUS.
O litígio começou quando o TCU anulou, no ano passado, uma licitação para a compra de imunoglobulina iniciada em 2022. A concorrência tinha apenas empresas nacionais e com o registro do medicamento na Anvisa.
O argumento do TCU para tomar a decisão é de que há um histórico de dificuldades de compra da imunoglobulina desde 2018 no Brasil e que isso autoriza que haja uma concorrência com participação das empresas estrangeiras sem o registro.
Uma nova disputa pública foi aberta pelo governo. Foram apresentadas propostas que vão de menos de R$ 1 bilhão –pelas estrangeiras sem o registro– a valores superiores a R$ 2 bilhões.
Uma das empresas que ofereceu um valor maior que R$ 2 bilhões é a brasileira Blau Farmacêutica S.A., que ingressou no STF com um pedido para que a decisão do TCU seja suspensa.
Nessa ação, um dos advogados da Blau é o ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Floriano de Azevedo Marques. Ele é um dos representantes da advocacia no tribunal e, por isso, pode atuar na profissão em processos que não sejam de direito eleitoral.
Na ação, a Blau diz que o Ministério da Saúde apontou que não há mais desabastecimento de imunoglobulina atualmente no Brasil, e por isso não seria necessário a participação de empresas estrangeiras sem registro na Anvisa na licitação.
“O fato de que não há desabastecimento do mercado nacional titular de registro de imunoglobulina é tão eloquente que sequer existe no Brasil, neste momento, disciplina legal que permita a importação, o desembaraço aduaneiro e consumo da imunoglobulina sem registro sanitário”, afirma a defesa da empresa nos autos.
A empresa afirma ainda que as propostas de preços apresentadas pelas estrangeiras são inexequíveis, e que em contratos anteriores houve a necessidade de aditivos.
Também cita reportagem da Folha de S.Paulo que revelou que a Anvisa interditou, ano passado, um lote de imunoglobulina avaliado em cerca de R$ 30 milhões.
Os medicamentos eram uma entrega da Prime Pharma LLC, dos Emirados Árabes, que é representada no Brasil pela empresa Farma Medical, de Manaus. Eles foram fabricados pelo laboratório chinês Harbin Pacific. A Farma Medical é uma das concorrentes na licitação bilionária.
Em manifestação nos autos, a AGU (Advocacia-Geral da União), braço jurídico do governo, também se manifestou contra a compra de estrangeiras, afirmando que isso pode “levar a um desincentivo regulatório e comprometer a isonomia nas licitações públicas”.
Pediu, no entanto, que não seja suspensa ou anulada a licitação, mas apenas que sejam desclassificadas as empresas que não têm produtos registrados na Anvisa, porque a suspensão, argumenta, “poderia resultar em um risco significativo de desabastecimento da imunoglobulina, afetando adversamente os pacientes que dependem desse tratamento”.
As empresas também fizeram manifestações. A Farma, por exemplo, disse que que haveria uma diferença de aproximadamente R$ 600 por frasco caso houvesse concorrência apenas com empresas com registro na Anvisa. “Há um explicito risco financeiro e de saúde pública”, diz a defesa da empresa.
Outra empresa estrangeira, a Nanjing Pharmacare, também citou os valores como argumento contra o pedido da Blau.
Segundo a defesa da empresa, considerando a quantidade a ser contratada, o Ministério da Saúde “poderia ter um prejuízo (diferença) de incríveis R$ 941.972.032,29, considerando o último preço praticado, de R$ 973,67, a última oferta da Blau (R$ 2.126,54) e a quantidade demandada pelo ministério”.
“Quase R$ 1 bilhão! Tais circunstâncias não seriam suficientes até para se pensar na constitucionalidade, ou, ao menos, na eficácia da atual regulamentação em vigor o país sobre a aquisição de determinados medicamentos?”, questionou a defesa da Nanjing.
O relatorno Supremo, ministro Kassio Nunes Marques, levou o processo para o plenário virtual da Segunda Turma do Supremo em 26 de abril.
Ele votou pela anulação da decisão do TCU, o que levaria à necessidade de uma nova concorrência.
“Considerado o decurso do tempo, e se houver necessidade, caberá ao Ministério da Saúde adotar providências para garantir o estoque e o fornecimento da imunoglobulina humana 5 g, como a celebração de contrato emergencial ou termo aditivo, em sendo o caso, até a conclusão de novo certame referente ao aludido medicamento”, afirmou Kassio.
No entanto, o processo acabou paralisado por um pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Dias Toffoli. Também votarão no caso os ministros André Mendonça, Gilmar Mendes e Edson Fachin.
Procurado, Floriano de Azevedo Marques diz que o argumento dos fabricantes estrangeiros é “tão falso quanto perigoso”. Segundo ele, não é possível dizer que a diferença de preços será dessa ordem, porque depende da situação de mercado e do grau de comprometimento de estoques dos fabricantes licenciados pela Anvisa.
Afirma ainda que é incorreto comparar quem produz o medicamento sem seguir os padrões exigidos pela agência e aqueles que estão adequados às exigências.
“É como comparar o preço de uma peça de automóvel adquirida no comércio regular e outra comprada num desmanche clandestino, sem origem atestada e sem garantia. Só que saúde humana não é conserto de automóvel”, afirmou.
“Medicamentos sem licença põe em risco a saúde dos pacientes, e isso não é reduzível a uma cifra de preço.”
Também procurada, a Farma Medical rebateu os argumentos de que poderia haver eventuais aditivos na contratação da empresa.
Em nota, diz que aditivos “só são concedidos quando há alguma alteração na situação anteriormente prevista”. “Ou seja, independentemente do contratado (com registro ou sem registro) os aditivos são celebrados quando há fato imprevisível que justifique. Assim, o argumento é apenas um desvio para disfarçar a absurda diferença de preço entre as ofertantes deste pregão”, afirma.
Também questionada sobre o lote de imunoglobulina interditado pela Anvisa, diz que “o tema ainda está em discussão administrativa” pela agência e, por isso, não irá se manifestar.
JOSÉ MARQUES / Folhapress