PEQUIM, CHINA (FOLHAPRESS) – No verão do ano passado, a partir de 29 de julho, Pequim enfrentou suas maiores chuvas em 140 anos. Em 83 horas, atingiu 60% da água que costuma chover num ano. Morreram 33 pessoas na capital chinesa.
Dez meses depois, o bairro de Mentougou, o mais atingido, na região oeste da cidade, ainda está em obras. Ruas que estavam cobertas de água ganharam asfalto poroso, encostas de morros estão sendo reforçados –e o leito de um rio que correu mundo ao cobrir uma ponte, está seco, sendo refeito para não assorear.
Essas e outras imagens, como os aviões ilhados no novo aeroporto de Daxing, na rota das águas de Mentougou, levantaram dúvidas quanto às cidades-esponja, projeto chinês iniciado oficialmente em 2015 –e que é visto como uma possível resposta para tragédias como a do Rio Grande do Sul.
Daxing, que abriu meses antes da pandemia, é chamado de “aeroporto esponja”, com amplo terreno úmido, lago artificial, valas e telhados verdes. O propósito, como no projeto todo, era absorver a água da chuva como uma esponja. Não aconteceu porque, antes de mais nada, choveu acima do teto previsto.
As chuvas e os tufões prosseguiram no verão chinês até setembro, quando atingiu a chamada Grande Área da Baía, no sul. Cidades da região, como Shenzhen, haviam se declarado prontas para chuvas como aquelas registradas até dois séculos antes, após seis de anos de implantação do projeto. Não foi o bastante.
O arquiteto Kongjian Yu, considerado um dos pais das cidades-esponja e professor da Universidade de Pequim, defende que as autoridades devem continuar a usar a técnica. Ele rebate as críticas dizendo que a implantação está só no começo na capital.
Afirma que “a campanha de cidades-esponja da China se provou muito bem-sucedida”, citando o exemplo de Sanya, na província de Hainan. “Situada na região das monções, costumava sofrer terríveis inundações urbanas e agora é festejada.”
Segundo ele, “é preciso esclarecer que se confundem as cidades-esponja verdadeiras com as falsas, porque muitas usam só como uma marca”. Grandes estruturas subterrâneas de retenção ou barragens são, na verdade, “o oposto dos princípios”.
Segundo Yu, “certamente esta solução baseada na natureza também terá que integrar algum grau de engenharia de infraestrutura” desse gênero. Mas, “para resolver as inundações e secas e os problemas de biodiversidade, a cidade-esponja é a principal solução adaptativa e deve ser priorizada.”
Questionado se estava acompanhando as enchentes no Brasil e se tinha algo específico para sugerir, afirmou: “Sim, vocês precisam agir imediatamente. Quanto mais cedo, melhor, porque o próximo golpe pode ser muito pior. Solução planeta-esponja”.
O especialista diz que “reter água na fonte sempre que a chuva cair e dar à água mais espaço rio acima, diminuir a velocidade da água durante seu fluxo, recuperando áreas úmidas e esponjas nas fazendas e ao longo dos cursos d’água, e criar um sistema de esponjas resiliente na área urbana”. Barragens de concreto e muros de inundação “não são solução, eles fracassaram e vão fracassar”.
Ainda para os brasileiros, falou: “Aprendam com os erros e com o êxito da China”.
Também questionado sobre as enchentes no Brasil, o engenheiro civil Mark Fletcher, da consultoria britânica Arup, responde que “têm sido devastadoras, mas é importante reconhecer, quando acontecem, que esses eventos extremos serão mais frequentes e mais intensos”. Exigem uma resposta sistêmica, para mais resiliência e também “recuperações mais rápidas”.
Também ele tira uma lista do que fazer, começando por buscar “governança unida em todo o ciclo da água” e também destacando “aprender com o que aconteceu para buscar novas infraestruturas e melhorar a manutenção dos ativos de inundação existentes”.
Sobre cidades-esponja, diz que tem visitado a China para acompanhar os programas em Pequim, Xangai, Cantão e Nanquim. “O conceito de abrandar e armazenar as águas pluviais, para reduzir o impacto das inundações em termos de perdas de vida e de danos nas infraestruturas, é muito sensato. Todas as cidades precisam construir rapidamente sua resiliência à incerteza das mudanças climáticas.”
Acrescenta que “é um conceito que tem origem na China, mas não há uma abordagem rígida” sobre como chegar lá. “Podemos aprender com o que já foi implementado na China, mas as soluções para cada país e cidade serão diferentes, pois o contexto local é diferente.”
Também ele defende implementar seus princípios sem abandonar as “infraestruturas residuais”, como piscinões e barragens.
Aconselha não considerar a cidade-esponja “isoladamente como uma bala de prata”.
A própria China evita fazê-lo, tratando o projeto com paciência e pouco alarde. Os primeiros passos teriam sido dados em 2013, mas a formalização pelo Conselho de Estado só foi se dar dois anos depois. Mais dois e o então primeiro-ministro Li Keqiang afirmou que era prioridade “promover a construção de cidades-esponja, para que as áreas urbanas tenham não apenas forma exterior, mas substância real”.
Até na maior aposta de urbanismo para o país, Xiong’an, que vem sendo erguida para receber parte da administração estatal e para ser um modelo ambiental para as demais, o conceito de esponja é evitado ou minimizado. A nova cidade fica a cem quilômetros da capital, cerca de meia hora por trem-bala.
Ainda está em obras. “O que posso dizer é que a infraestrutura de cidade-esponja que está sendo construída lá não está concluída, mas houve um investimento significativo, criando bacias de inundação para os rios ao redor e uma rede de cursos d’água para absorver a água em toda a cidade”, diz o pesquisador americano Andrew Stokols, do MIT.
“Ainda não sabemos se vai funcionar, porque ainda não foi testada”, diz, lembrando que as enchentes de 2023 não chegaram à cidade. “A localização de Xiong’an é muito difícil, porque é extremamente baixa.” Ex-professor da Universidade de Pequim, ele retorna à capital neste verão para seguir atento o que vai acontecer com a Brasília chinesa.
NELSON DE SÁ / Folhapress