Entenda por que o termo ‘refugiado climático’ não é adotado pelas Nações Unidas

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Cada vez mais usada por ambientalistas, a designação de refugiado climático não é apoiada pela ONU (Organização das Nações Unidas) e suas agências, uma vez que os motivos ambientais não constam como justificativa válida no principal instrumento legal sobre o tema, a Convenção dos Refugiados.

O documento considera como refugiados apenas as pessoas que fogem de guerra, violência, conflito ou perseguição e cruzaram uma fronteira internacional em busca de segurança.

“O termo refugiado climático não tem embasamento no direito internacional nem no direito doméstico dos países. O refugiado é uma categoria normativa muito importante, que surge com a convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951”, disse à Folha de S.Paulo Débora Castiglione, coordenadora da unidade de Mobilidade, Meio Ambiente e Mudança do Clima da OIM (Organização Internacional para as Migrações), que faz parte do sistema das Nações Unidas.

Castiglione destaca que fala apenas em nome da OIM, mas a mesma justificativa é adotada amplamente em outras entidades lidadas à ONU, como o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados).

“A categoria normativa de refugiado permitiu proteger milhões de pessoas que estavam em situação de ter o fundamentado temor de retornar aos seus países de origem por um desses cinco motivos de perseguição [raça, nacionalidade, opiniões políticas, pertença a um grupo social e religião]”, afirma Castiglione. “Então, o refugiado climático não existe, não há base jurídica para isso”.

Publicada em 1951, a Convenção dos Refugiados nasceu no rescaldo da Segunda Guerra Mundial e trazia limitações temporais e geográficas bastante específicas: só estavam enquadrados acontecimentos ocorridos na Europa e anteriores a 1º de janeiro daquele ano. Em 1967, uma alteração atualizou o documento e retirou as condicionantes temporais, além de expandir a validade para outras partes do globo.

Diante das previsões de aumento de eventos climáticos extremos por conta do aquecimento global, não seria a ocasião para realizar uma nova mudança no texto, incluindo agora as pessoas afetadas por essas situações?

A representante da Organização Internacional para as Migrações afirma que “as questões de atualização das convenções do direito internacional são para serem tratadas no âmbito dos países”.

Débora Castiglione destaca ainda que um documento mais recente, o Pacto Global sobre os Refugiados – aprovado pela Assembleia-Geral da ONU em dezembro de 2018, após dois anos de intensas negociações- explicita que os motivos ambientais não são motivos para refúgio, embora possam interagir com outros fatores que o sejam.

O texto do pacto afirma que “embora não sejam por si só causas dos movimentos de refugiados, o clima, a degradação ambiental e os desastres naturais interagem cada vez mais com os motores dos movimentos de refugiados.”

Ainda que a concepção de refúgio por questões exclusivamente ambientais não esteja presente na Convenção de Refugiados e nem no pacto mais recente sobre o tema, essa categorização pode ser aplicada em situações onde o risco de perseguição ou de violência aumente por conta desses fatores.

A coordenadora de mobilidade da OIM afirma que os casos de deslocamento por questões ambientais ocorrem sobretudo dentro dos próprios países. “São mais raros os casos em que o deslocamento acontece através de uma fronteira internacional, mas também podem acontecer. Por exemplo, se o desastre acontece próximo a uma zona de fronteira. Nesse caso, existe o cruzamento de fronteiras, mesmo que seja uma coisa de curto prazo.”

Castiglione afirma que a os deslocamentos provocados por desastre não são um assunto novo, mas que as discussões sobre o tema têm se intensificado, com evoluções em termos de políticas públicas, tanto domésticas quanto em cooperações entre os países, e em diretrizes não vinculantes.

Ela destaca a criação de vias regulares de migração para pessoas que possam ser impactadas por situações de desastres ou questões ambientais. Um exemplo recente é um acordo celebrado em 2023 entre Austrália e Tuvalu, um pequeno país insular no Pacífico, fortemente afetado pelo aumento do nível dos oceanos e outras consequências das mudanças climáticas.

“Esse acordo tem um capítulo sobre mobilidade humana com dignidade que vai ampliar vias regulares de migração para pessoas impactadas por situações ambientais em Tuvalu”, detalha. “O capítulo fala de mobilidade humana com dignidade e de vias de migração regulares, e não impõe condicionantes. Portanto, não vai condicionar [a migração] a ser impactado por alguma coisa. Há um guarda-chuva maior com vários temas, inclusive impactos na mudança do clima.”

“É sempre importante reforçar que os direitos humanos são universais e que também cobrem e protegem todas as pessoas deslocadas por desastres e no contexto de mudança do clima, de maneira não discriminatória.”

Para a representante da Organização Internacional das Migrações, o caso das atuais enchentes no Rio Grande do Sul se enquadraria em uma outra nomenclatura: a de deslocados por desastres.

“Nós temos muitas pessoas impactadas, entre elas pessoas que precisaram sair de seus locais de residência de uma maneira súbita e forçada por causa do impacto do desastre, e aquelas que saíram em antecipação. Houve casos em que as pessoas foram evacuadas para sair do caminho do perigo. Essas são pessoas que nós entendemos como deslocadas por desastres”, pontua.

A visão das Nações Unidas sobre a não inclusão das questões ligadas ao clima entre as justificações para concessão de refúgio é criticada por ambientalistas em setores da academia.

Em entrevista à Folha de S.Paulo no começo de maio, Carolina Claro, professora do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora do tema há duas décadas, é uma das vozes contrárias a essa interpretação.

“Em termos linguísticos e sociais, refugiado ambiental ou refugiado climático é mais impactante e chama mais atenção do que migrante ou deslocado ambiental, porque a percepção social é de que pessoas refugiadas estão em situações de grande perigo e, por isso, precisam de proteção com urgência”, afirmou.

Em 2023, um relatório assinado pelo primeiro relator especial sobre mudanças climáticas da ONU, Ian Fry, considerou que “o número de pessoas deslocadas através de fronteiras internacionais está crescendo rapidamente” e pediu mais ações da comunidade internacional para o acolhimento e proteção.

Embora afirme que já haja salvaguardas à proteção legal das pessoas deslocadas devido às alterações climáticas, o documento faz diversas recomendações para que os decisões políticos protejam esses grupos mais vulneráveis.

“O Conselho de Direitos Humanos deve preparar uma resolução para apresentação à Assembleia Geral da ONU instando o órgão a desenvolver um protocolo opcional no âmbito da convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados para abordar o deslocamento e a proteção legal para pessoas em todo o mundo afetadas pela crise climática”, diz o texto.

GIULIANA MIRANDA / Folhapress

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