SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1992, Marcio Rolim era um dos milhares de jovens que foram às ruas com o rosto pintado de verde e amarelo em protesto contra o então presidente Fernando Collor de Mello. Quase três décadas depois, as cores que representaram esperança viraram motivo de medo para ele.
“Não queria sair na rua com qualquer coisa que representasse a bandeira por receio de acharem que eu apoiava o Bolsonaro”, diz o criador de conteúdo. “Tentei ao máximo me afastar das cores da bandeira.” No início de maio, porém, essa distância começou a diminuir.
Na ocasião, a cantora Madonna brandiu a bandeira do Brasil junto com Pabllo Vittar no show da americana na praia de Copacabana. Nesse momento, Rolim e outros membros da comunidade LGBTQIA+ perceberam que era hora de tirar o verde e amarelo do armário.
Agora, eles querem que a bandeira deixe de ser o símbolo do bolsonarismo e volte a ser o emblema de todos os brasileiros. “É sobre resgatar esse símbolo de cidadania”, diz ele. “Por isso, vamos botar glitter na cara, nos pintar inteiro, vestir um shortinho e ir para a Parada do Orgulho com a bandeira do Brasil.”
Depois da apresentação de Madonna e Pabllo, as redes sociais fervilharam com mensagens pedindo que o evento resgatasse as cores pátrias. Os organizadores não se fizeram de rogados. Decidiram convocar o público a ocupar a avenida Paulista neste domingo com o verde e amarelo. A Marcha do Orgulho Trans, nesta sexta em São Paulo, fez o mesmo pedido nas redes sociais.
Às vésperas da Parada, sites vendem camisas estilizadas, nas quais o emblema nacional divide espaço com as cores do arco-íris união pouco provável há alguns meses.
Até mesmo saunas gays se juntaram à campanha, dando promoção a frequentadores que estejam com a camisa da seleção brasileira.
“A bandeira do Brasil também é minha. Mesmo que tenha sido usada de forma errada, estamos recuperando ela”, diz Pabllo Vittar, que será uma das atrações da Parada do Orgulho deste ano.
Antes do show da drag com Madonna, outros artistas progressistas já haviam subido ao palco com as cores da bandeira, como foi o caso de Anitta e Daniela Mercury. No entanto, foi só com a apresentação da rainha do pop que o resgate tomou fôlego.
“Erguer a bandeira do meu país e ter dividido esse momento com a Madonna me enche de orgulho”, diz Pabllo. “É como mais um respiro e um passo à frente em relação a tudo o que passamos no nosso país anos atrás.”
Quando chegou ao poder, Bolsonaro se apropriou de símbolos nacionais para mobilizar seus apoiadores e estimular ataques à democracia. Inclusive, proferiu falas de teor homofóbico em diversas ocasiões.
“Infelizmente, o verde e amarelo se tornou símbolo de algo que diz o contrário do que eu e grande parte do país acreditamos”, diz a cantora. “Virou símbolo de tristeza acompanhado de discursos de ódio.”
Opinião parecida tem Nelson Matias Pereira, presidente da Parada do Orgulho. “Usaram esse símbolo como se só eles fossem patriotas e todos nós fôssemos a escória. Agora é o momento oportuno para fazer esse resgate.”
Ele diz que tentou fazer isso em outras edições da Parada, mas a ideia não prosperou porque as pessoas não queriam ser confundidas com bolsonaristas. A proposta só se concretizou por influência do show de Pabllo e Madonna. “Assim que elas subiram no palco, meu telefone começou a apitar.”
As mensagens instavam Pereira a fazer uma Parada que ressignificasse os símbolos nacionais, a exemplo do que as cantoras fizeram na apresentação. “Era agora ou nunca.” No dia seguinte ao show, ele se reuniu com a diretoria do evento. A decisão foi unânime.
“Esse resgate é importante para que a gente diga de forma definitiva que a bandeira não é de alguns, e sim de todos. A gente só vai resgatar aquilo que também nos pertence.”
Especialista em moda, Maíra Zimmermann diz que Madonna e Pabllo subverteram o verde e amarelo, quase como num ato de deboche e rebeldia ao conservadorismo. Foi algo parecido com o que a banda Sex Pistols fez ao se apropriar da bandeira inglesa.
“De uma certa forma, elas ironizaram a autoridade. O bolsonarismo pega a bandeira como uma coisa séria, ligada à ordem. Elas foram lá, questionaram e desconstruíram isso”, diz a especialista, que é coordenadora do departamento de moda da Faap. “Com o show, a comunidade viu que poderia usar essas cores novamente.”
O empresário Tiago Santos foi uma dessas pessoas que se sentiram livres para usar a bandeira novamente. Por isso, decidiu promover a festa Pride nas Alturas, um camarote com temática verde e amarela durante a Parada.
Ele diz ter visto muitos amigos jogarem a camisa da seleção no lixo durante o governo Bolsonaro por medo de serem associados à extrema direita. “A sensação era a de que a gente estava sendo proibido de usar a bandeira”. Agora, o cenário é outro.
Ele também é dono do Cabaret da Cecília, espaço multicultural de São Paulo onde diz ter visto o número de frequentadores de verde e amarelo aumentar nas últimas semanas. “Nesse momento, o verde e o amarelo simbolizam resistência e esperança.”
Essas cores, no entanto, ainda provocam apreensão em algumas pessoas da comunidade. Artista não binário, Julha Franz diz ter sentimentos ambivalentes em relação à bandeira. Por um lado, considera importante ressignificar o símbolo, por outro diz que essas cores ainda remetem a traumas.
“Acho disruptivo me apropriar dele, mas, ao mesmo tempo, ainda é uma coisa que me causa muita dor. Carrego essa memória traumática.” Apesar disso, diz que vai de verde e amarelo à Parada como uma forma de subverter o imaginário que se construiu sobre a bandeira ao longo dos anos.
“Acredito muito na força de nos apropriarmos de signos que foram usados contra nós de alguma forma. Toda a filosofia queer parte disso”, diz Franz, lembrando a palavra inglesa que era usada como xingamento, mas que foi transformada em afirmação identitária pela comunidade. “Depois que passou a pior fase do bolsonarismo, vejo que é o momento de retomar a nossa bandeira.”
O antropólogo Edilson Márcio Almeida da Silva diz que esse movimento de fato é um resgate. “E só é um resgate porque houve um sequestro”, afirma ele, que é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
De acordo com o especialista, esse sequestro começou em junho de 2013. À época, milhares de pessoas tomaram as ruas do país com reivindicações difusas, mas que tinham como elemento em comum a insatisfação com o poder público.
Na esteira dos protestos, grupos conservadores decidiram assumir o protagonismo dos atos, momento no qual se associaram ao verde e amarelo, diz Silva. Por meio de elementos estéticos, fizeram uma contraposição entre eles, que seriam os verdadeiros patriotas, e todo o resto gays, lésbicas, pessoas trans, ou seja, os corpos considerados desviantes.
Ocorre que a bandeira é nacional e, portanto, deve representar o conjunto da sociedade. “Por isso, eu aponto que houve um sequestro do verde e amarelo”, diz o pesquisador, acrescentando que essa apropriação simbólica gerou prejuízos ao Brasil.
“O principal problema é a negação da alteridade. A existência do outro é desautorizada e minimizada”, afirma ele. “É um processo extremamente autoritário.”
O sequestro de símbolos pátrios costuma ser frequente em momentos de ataque à democracia. A ditadura militar, por exemplo, apostava no verde e amarelo como uma forma de afastar o chamado perigo vermelho, isto é, a influência do comunismo sobre o país.
Nesse período, o regime fez uso do nacionalismo para sufocar críticas e promover coesão social. Antes disso, a ditadura de Getúlio Vargas havia lançado mão da mesma estratégia.
“Havia essa confusão proposital entre Estado e governo”, diz Mateus Gamba Torres, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília. “Se você critica o governo é porque você é comunista ou está contra o Brasil. E essa é justamente a retórica do Bolsonaro.”
Não à toa, o ex-presidente repetia à exaustão o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Dizia ainda que as minorias deviam se curvar e se adequar à maioria. De acordo com Torres, discursos como esse têm inspiração fascista. “É próprio do fascismo a exclusão das diferenças. Por isso, é necessário estar dentro de um padrão de brasilidade relacionado a grupos tidos como a maioria.”
Aqueles que não se enquadram na ideia de brasilidade forjada por governos autoritários são relegados à marginalidade. “Quando um grupo se diz mais brasileiro que os outros, ele vai querer impor a sua vontade e a sua ideologia. Dirá que tudo o que é contrário a ele é contra o Brasil.”
Por esse motivo, ele considera a retomada da bandeira pela comunidade LGBTQIA+ uma forma de confrontar a exclusão social. “É uma maneira de mostrar que eles não são cidadãos de segunda classe e que não vão se esconder”, diz o especialista. “Eles não ficarão mais no armário. Nem no armário da orientação sexual nem no da política nacional.”
MATHEUS ROCHA / Folhapress