KIEV, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – É uma tarde de sol em Kiev. Uma menininha de vestido e sapatos cor-de-rosa pula e dança ao som de uma banda de jazz que toca no parque. Patinetes circulam pelas ruas, e pessoas vendem flores em balcões improvisados nas calçadas. Pré-adolescentes se enfileiram na porta de uma matinê esperando a sua vez para entrar.
Nem parecia que, na madrugada de sábado (1º), a cidade tinha sido alvo de uma onda de ataques aéreos que atingiu todo o território, na maior ofensiva do tipo desde o final de março –ao que tudo indica, uma reação da Rússia ao aval que Estados Unidos e Alemanha deram à Ucrânia para usar armas ocidentais contra alvos militares dentro do território russo.
A sensação de que a guerra é algo distante é comum na capital ucraniana, onde o sinal mais palpável de que o país vive um conflito são os incessantes blecautes, consequência da destruição da infraestrutura energética pelo Exército de Vladimir Putin.
Os habitantes de Kiev, que conta com um sistema de defesa aérea mais avançado do que os da maioria das principais cidades do país, praticamente não se mexem quando ouvem alarmes sonoros –nas três noites que os profissionais da delegação de jornalistas da América Latina da qual a Folha de S.Paulo fazia parte passaram no abrigo antibombas do hotel, tiveram pouca ou nenhuma companhia dos demais hóspedes.
“Acontece praticamente todo dia. Infelizmente, nos acostumamos”, diz Elisa, 26, em uma rua na região central da Kiev. Ela tinha acabado de se casar e entrava no carro para ir à festa de casamento com o marido, jogador do time de futebol Obolon. Os ataques da madrugada nunca a fizeram pensar em remarcar a celebração.
Para a vendedora Alicia, 22, o conflito com a Rússia dá em certa medida um senso de urgência para a população, que passa a tentar viver ao máximo a vida. Ela, que trabalha em uma das muitas loja de vestidos de noiva daquela região, conta que várias de suas clientes afirmam querer “se casar o mais rápido possível” após tomarem a decisão.
“Viver é perigoso para a gente hoje. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã.” Alguma versão dessa frase se repete na boca de quase todo ucraniano com quem se fala.
Nascido e criado em Kiev, o ator e músico Sasha, 20, conta que passou a conviver melhor com a guerra depois que amigos seus que moram no Donbass, região leste da Ucrânia reivindicada pela Rússia, compartilharam suas experiências com ele. As áreas estão sob disputa desde 2014, quando separatistas pró-Moscou tomaram partes de Donetsk e Lugansk e as declararam repúblicas independentes.
Esse histórico, aliás, ajuda a contextualizar o que talvez parecesse de outra maneira uma certa alienação dos moradores de Kiev em relação à Guerra da Ucrânia.
É consenso entre os ucranianos que o conflito atual não começou, como noticiado pelos jornais, em 24 de fevereiro de 2022 –data à qual eles se referem como a “invasão em grande escala da Rússia”–, mas muito antes, após a anexação da Crimeia pelo governo de Vladimir Putin. Por esse raciocínio, eles consideram que já vivem em guerra há uma década.
No mais, a guerra se faz presente nos detalhes em Kiev. Bandeiras ucranianas que enfeitam janelas e varandas dos edifícios no centro da cidade e se multiplicam em lugares públicos como a Praça da Independência. Foi lá que protestos contra a decisão do então presidente Viktor Ianukovitch de não assinar um acordo de cooperação com a União Europeia em prol de uma aproximação com a Rússia terminaram com a morte de 108 manifestantes em confrontos com as forças de segurança.
Além disso, quase todos os ucranianos têm um parente ou amigo lutando na linha de frente ou vivendo em territórios ocupados. E muitos têm alguma história sobre como o conflito de alguma forma impactou os caminhos de suas vidas.
CLARA BALBI / Folhapress