FOLHAPRESS – Na faixa título de seu novo álbum, “Pra você, Ilza”, Hermeto Pascoal exercita uma daquelas suas melodias sem fim, com jeito de improviso e entonação de conversa animada, cheia de alternâncias entre células rítmicas, binárias, ternárias e alteradas, dobradas por sopro e teclado, juntinhas como num tema de Charlie Parker com Dizzy Gillespie.
A referência ao bebop nunca é gratuita ao se falar de álbuns de Hermeto Pascoal com seu grupo, alguns dos quais se inserem entre os melhores da música instrumental brasileira em qualquer tempo como o histórico “Ao vivo Montreux Jazz”, de 1979.
Os temas tocados em uníssono não são ainda, é claro, os improvisos, mas fruto de uma escrita em que o virtuosismo já está implícito, tanto nas peripécias rítmicas como no andamento rápido. São desafios bem-humorados e, portanto, mais para Haydn e Mozart do que para Liszt ou Paganini e que precisam contar com o apoio de uma seção rítmico-harmônica a cozinha absolutamente precisa e entrosada.
Hermeto é conhecido pela longevidade do trabalho com os mesmos músicos. Como nas melhores bandas e grupos de câmara, o tempo juntos permite que cada respiração e nuança do amigo seja decodificada, absorvida, respondida, sempre em diálogo.
O nível do trabalho de Hermeto tendo a seu lado o saxofonista Jota P, seu filho Fábio Pascoal na percussão, Itiberê Zwarg no baixo, seu filho Ajurinã Zwarg na bateria, e o pianista André Marques segue intenso e perfeito.
Todos improvisam e participam ativamente do processo criador. Marques torna-se um McCoy Tyner do sertão, e os temperos sincronizados da cozinha-família formada por Fábio, Itiberê e Ajurinã são um show dentro do show. Jota P tem fraseado elástico, fácil, e suas articulações parecem ser realizadas pela respiração do próprio Hermeto.
Com partitura datada de 17 de janeiro de 2000, em “Pra Você, Ilza”, a faixa título, Itiberê, Marques e Jota improvisam antes de Hermeto, que usa a voz num tom entre a conversa e o instrumento.
“Pra Você, Ilza”, o álbum, tem 13 temas que Hermeto buscou em um caderno de criações inéditas de 1999-2000. Ilza da Silva, esposa dele por 46 anos, morreu pouco tempo após a última música do caderno ter sido escrita.
Dedicado a ela com esse “você” no meio da dedicatória, a intimidade atípica no modo de usar a terceira pessoa, que o português do Brasil não partilha com outras línguas, o disco, que também sai em vinil, parece ter sido gravado em um só fôlego: é criativo, vibrante, jovial, energético.
Há choros belíssimos, como “Passeando pelo jardim”, e na divertidíssima “No topo do morro de Aracajú”, uma vocalização polirrítmica “a cappella” da banda é alternada por frases instrumentais que parecem extraídas dos próprios timbres e recortes vocais. O mesmo tipo de percussividade colorida entra em “Voltando para casa”, ou sobra alterada num sambão no meio de “Na feira do Jabour”.
A repetição dos temas por Hermeto dentro das faixas é sempre tão bem amarrada que pode passar despercebida. Às vezes ostinatos a redundância obstinada de ciclos curtos, nunca óbvios, criam contrastes e abrem espaço às improvisações, como em “Conversação”.
A inspiração direta no Recife, onde o alagoano Hermeto morou nos anos 1950 cidade onde também se casou com Ilza está presente explicitamente em “Sol de Recife”, “Porto da madeira”, “Recordações de Recife” e “Do Rio para Recife”.
Choros e frevos tangenciam-se, com pitadas contidas de samba, muita memória de bandas e dobrados, maracatu e forró. Mas tudo muito leve. Uma vez que cada música tem personalidade rítmica única, os gêneros são somente pontos de partida.
O free jazz pianístico inicial de “Sentir é muito bom” é sucedido por uma melodia arrastada, com tempo de aproveitar mais a expressividade de cada nota do que nas outras faixas. Nela, a simplicidade reina complexa. É um retrato do grande artista que, repleto de de musicalidade, está prestes a completar 88 anos.
PARA VOCÊ, ILZA
Avaliação Ótimo
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Autoria Hermeto Pascoal & Grupo
Gravadora Rocinante
SIDNEY MOLINA / Folhapress