SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O britânico Peter Brook, um dos mais influentes diretores teatrais do século 20, afirmava que o teatro é para corajosos. É essa definição que Hugo Coelho cita para falar sobre “As Aves da Noite”, peça escrita por Hilda Hilst há 56 anos e dirigida por ele, com apresentações gratuitas em teatros municipais de São Paulo.
“Encenar esse texto foi muito difícil. Um desafio para todos nós, tanto pelo aspecto formal como pelo conteúdo”, revela. O desafio inclui o público, que lida durante 75 minutos com a encenação de uma história de vítimas do Holocausto em Auschwitz. Ao mesmo tempo, o espetáculo se propõe a ser um grito contra a violência como instrumento de ação política hoje.
A peça, idealizada pelo produtor Fábio Hilst, teve a primeira temporada apresentada virtualmente durante a pandemia e venceu o Prêmio APCA de Melhor Espetáculo Virtual em 2022.
O confinamento dos personagens em gaiolas que ocupam todo o palco remete a um cenário de campo de concentração, mas também a um presídio brasileiro. Durante a pandemia, tinha a força de falar para um público enclausurado em casa para tentar escapar da Covid e enfrentava as ameaças de autoritarismo do governo Bolsonaro.
O texto de Hilda Hilst é baseado na história real do padre franciscano Maximilian Kolbe, que no campo de concentração nazista se voluntariou para ocupar o lugar de um homem judeu sorteado para morrer no chamado “porão da fome”, uma represália à fuga de um prisioneiro.
O religioso polonês, morto em Auschwitz em 1941, aos 47 anos, foi elevado ao santo pelo papa João Paulo 2º. Na cela do “porão da fome”, buscava oferecer conforto aos outros presos. A história dele é contada também no filme “Duas Coroas”.
Escrita em 1968, ano do AI-5 e do assassinato de Martin Luther King, a peça foi pensada por Hilst como uma advertência dirigida ao nazismo. Porém, em carta ao crítico Anatol Rosenfeld, ela refletiu que o trabalho era uma advertência a qualquer estrutura política de opressão.
“A primeira coisa que os governos totalitários e ditatoriais fazem ao prender alguém é destituí-lo de sua dignidade e submetê-lo ao sofrimento extremado. E isso os nazistas fizeram com requintes inimagináveis de crueldade”, afirma o diretor.
No porão em que estão engaiolados, os prisioneiros expõem dores atrozes, refletem sobre a vida, a morte e as memórias que vão deixar. O padre, o carcereiro, o poeta, o estudante e o joalheiro recebem visitas de um oficial nazista e de uma mulher responsável pela limpeza dos fornos de Auschwitz.
O oficial, com sua crueldade, faz com que um dos prisioneiros questione o padre sobre a afirmação de que todos convivem na terra como seres humanos, o que pressupõe uma condição de igualdade. A mulher da limpeza é a prova de nossa capacidade de agarrar a vida, mesmo diante de atrocidades e humilhações.
Os prisioneiros são chamados de porcos, desprezados e subjugados, o que evidencia que os seus algozes encarnam o reverso da humanidade.
O elenco, que inclui nomes como Marco Antônio Pâmio (padre Maximilian), Marat Descartes (carcereiro), Regina Maria Remencius (mulher da limpeza) e Walter Breda (joalheiro) é um dos pontos altos do espetáculo.
Há poesia na montagem, mas nenhum espaço para a esperança, o que leva de volta à frase usada pelo diretor no programa da peça: “Vamos lá, coragem”.
“As Aves da Noite” fez uma temporada no Teatro Cacilda Becker, na Lapa, e agora segue para apresentações no Teatro Arthur Azevedo, entre 6 e 16 de junho, na Mooca; e no Teatro Paulo Eiró, entre 20 e 30 de junho, em Santo Amaro.
Escritora, poeta e dramaturga, Hilda Hilst escreveu oito peças teatrais, de 1967 a 1969, durante a ditadura militar. O crítico Anatol Rosenfeld dizia que a obra cênica da paulista de Jaú é marcante pela qualidade literária e por introduzir uma voz original na dramaturgia brasileira, “raramente beneficiada pela colaboração criativa dos poetas”.
Textos literários da escritora também ganharam montagens teatrais, caso de “A Obscena Senhora D” e do “Caderno de Lori Lamby”, duas das obras mais cultuadas de Hilst.
Fábio Hilst conheceu a dramaturgia da escritora após uma visita à Casa do Sol, sítio em Campinas onde ela viveu por 40 anos. Foi apresentado às peças de teatro pelo escritor José Maria Mora Fuentes, que viveu no sítio, e entregou um disquete ao produtor.
“Dizia ela que tinha o intuito de estreitar seu contato com o público, falar mais diretamente com ele em um momento em que nosso teatro e nossos artistas sofriam com o regime militar”, diz.
Os textos teatrais foram encenados nas décadas de 1970 e 1980, mas permaneceram desconhecidos do grande público.
“As Aves da Noite” é um convite para que outros grupos e produtores encenem as demais peças deixadas pela dramaturga”, completa o produtor.
AS AVES DA NOITE
Quando Teatro Arthur Azevedo – De 6 a 16 de junho – Quin. a sáb, às 21h, e dom., às 19h. Teatro Paulo Eiró – De 20 a 30 de junho – Quin. a sáb, às 21h, e dom., às 19h.
Onde Teatro Arthur Azevedo e Teatro Paulo Eiró
Preço Grátis
Autoria Hilta Hilst
Elenco Marco Antônio Pâmio, Marat Descartes e Regina Maria Remencius
Produção Fábio Hilst
Direção Hugo Coelho
CRISTINA CAMARGO / Folhapress