LONDRES, REINO UNIDO (FOLHAPRESS) – A pressão social sobre os padrões de beleza que impactam as mulheres tem crescido no mesmo ritmo que a tecnologia avança. Se na última década os filtros de aplicativos ajudaram a distorcer a realidade, agora a inteligência artificial cria uma imagem que não existe na vida real.
As características que envolvem magreza, cor dos olhos, cabelo e pele são reforçados por ferramentas de inteligência artificial. É só perguntar para alguma plataforma geradora de imagem como seria a “uma mulher bonita” e logo verá: branca, magra, cabelo liso e olhos claros. Assim apareceram os retratos testados pela reportagem.
Essas figuras femininas invadem os feeds de redes sociais e, junto aos filtros que modificam rostos e corpos, geram ainda mais pressão estética.
Para Phillippa Diedrichs, professora de psicologia e imagem corporal e especialista em saúde mental, “a inteligência artificial perpetua pressões sociais, mostrando um preconceito baseado em aparência e estereótipos quando se trata de cor de pele, características eurocêntricas, idade, tamanho do corpo, expressão de gênero e expressão de sexualidade”.
“Mesmo agora, com desenvolvimentos e progressos, se você usar a inteligência artificial, é realmente desafiador criar uma imagem que reflita a incrível diversidade e identidades que temos em nossa vida cotidiana”, disse Diedrichs em evento de lançamento da campanha Beleza Real da Dove, em Londres.
A marca conduziu uma pesquisa que indica avanços na representação das mulheres na publicidade e na mídia de beleza nos últimos cinco anos. De acordo com o levantamento, isso é o que 56% das mulheres entrevistadas pela Dove acreditam. O estudo buscou analisar o impacto atual dos padrões de beleza sobre mulheres e meninas ao redor do mundo, tendo entrevistado mais de 33 mil pessoas.
No Brasil, a pesquisa foi realizada com 1.001 homens e mulheres de 18 a 64 anos, e 752 de 10 a 17 anos.
Ainda que os padrões de beleza tenham se tornado mais diversos e mais mulheres consigam se enxergar na mídia e em propagandas, ainda existe uma busca pelo perfeccionismo que é agravada na internet repleta de imagens distorcidas. No Brasil, 71% das mulheres se sentem pressionadas pelas redes sociais e influenciadas a se submeterem a procedimentos estéticos, mais do que a média global de 56%.
As comparações com imagens manipuladas podem impactar negativamente a imagem corporal de mulheres e meninas. A pesquisa da Dove mostra que 59% das mulheres afirmam que a possibilidade de criar diferentes versões de si mesmas usando IA pode ter um impacto negativo na forma como elas se veem.
O ChatGPT, quando perguntado pela reportagem sobre o que seria uma mulher bonita, afirma que a ideia de beleza é “altamente subjetiva”, mas que há alguns atributos frequentemente associados à beleza. Alguns deles são pele clara e bem cuidada, lábios cheios e bem definidos e proporções corporais harmoniosas.
Já a imagem de uma mulher brasileira gerada pelo Dell-E, plataforma integrada ao ChatGPT, é magra e bronzeada –uma aparência comum no imaginário estrangeiro. Criações como essas são cada vez mais comuns. Somente no ano passado, mais de 15 bilhões de imagens foram geradas usando algoritmos de texto para imagem.
“Foi muito desafiador criar alguma coisa com a forma e o tamanho do meu corpo”, disse a professora Diedrichs, que é uma mulher gorda. “Imediatamente, sem muita orientação, o que eu obtive foi uma imagem hipersexualizada, com traços muito eurocêntricos e um corpo muito pequeno apesar de eu ter pedido para que tivesse bastante busto.”
Se ela, que é uma especialista em imagem corporal, ficou frustrada com o resultado que obteve, imagine uma estudante fazendo lição de casa usando tais ferramentas. “O que me fez pensar o quão endêmicos são todos esses estereótipos, o quanto ainda temos que trabalhar para sermos representados”, afirmou a professora.
Para entender o impacto dessas imagens, é preciso também compreender como funciona essa ferramenta. A IA é sempre ensinada, a partir de um grande corpo de dados, a executar determinadas tarefas e partir de determinados comandos, explica Clarice Tavares, coordenadora de pesquisa, desigualdades e identidades do Internetlab.
“No geral, esses padrões estão articulados com as informações com as quais a IA é alimentada e como ela é programada. Existe uma relação humano-máquina nessa produção de imagens que reforçam o padrão de gênero”, diz. “A tecnologia pode reproduzir padrões, reproduzir desigualdades e também, a partir dessa reprodução e a partir do alcance que a tecnologia tem, produzir novas desigualdades.”
Essa relação com padrões sociais prévios acaba perpetuando ideais de beleza restritos. E a tecnologia não é isolada do mundo. É o que mostra a pesquisadora e professora Safiya U. Noble em seu livro “Algoritmos da Opressão”, ao discorrer sobre a forma que o Google lucrava com o racismo.
Quando se pesquisava na plataforma por “mulher feia”, a primeira imagem que aparecia era de uma mulher negra. Anos se passaram até que esse comando fosse retirado. “Isso é uma violência de gênero e de raça que está ali se reproduzindo dentro do online e que vai se atualizando”, afirma Tavares.
A pesquisadora do Internetlab fala sobre uma dinâmica de desigualdade de raça e gênero estruturais presentes na produção e distribuição dessas tecnologias. “Quando a gente pensa em quem são as pessoas atuando na área de tecnologia e construindo códigos em geral, a gente continua tendo uma reprodução de hierarquias sociais”, diz.
Para Tavares, é importante que as plataformas tenham um olhar mais direcionado para essas questões e, juntamente, a sociedade apontar esses erros e cobrar respostas.
Sobre a inteligência artificial, Diedrichs enfatiza: “Estou esperançosa de que, assim como a tecnologia das redes sociais, existam muitos benefícios, mas ainda temos muito trabalho a fazer quando se trata de diversidade, inclusão e representação.”
A jornalista viajou a convite da Dove.
VITÓRIA MACEDO / Folhapress