BUENOS AIRES, PE (FOLHAPRESS) – Quem vê de fora a monumental construção no bairro de Balvanera, em Buenos Aires, pensa que ali vivia uma família (muito) endinheirada. Quiçá um político importante. Ou que o lugar era um centro de poder. Mas por trás do gigante Palácio de Águas Correntes, chamativo como os prédios do Congresso ou da Casa Rosada, está… o primeiro depósito de água da capital argentina, um tanque gigantesco que antigamente abrigava até 72 milhões de litros de água potável.
É símbolo dos tempos gloriosos do sistema de água e saneamento portenho, outrora considerado uma referência para toda a América Latina. Num vaivém entre épocas estatais e épocas de concessões a empresas internacionais, o sistema está há 18 anos consecutivos nas mãos do Estado. Com Javier Milei, está prestes a ser reprivatizado.
Criada em 2006 durante o governo de Néstor Kirchner, a AySA (Água e Saneamento Argentinos) marcou a reestatização de um serviço público que estava concessionado ao grupo francês Suez desde 1993. Sob Milei, a empresa entrou na lista de estatais que o governo quer colocar à privatização assim que obtiver o sinal verde do Congresso.
A estatal é responsável pelo tratamento de água e pela rede de esgoto de Buenos Aires e de mais 26 cidades dos arredores o conurbano, como a pequena e turística Tigre. Mesmo que sua abertura para uma concessão ainda não tenha sido chancelada, para os trabalhadores da empresa a sensação é de que isso já está em andamento.
Em outras gestões atrelada a ministérios como a antiga pasta de Obras Públicas, a AySA está agora sob as asas da chefia de gabinete de Milei. A ideia é reduzir custos. Cortar em torno de 15% os gastos operacionais. E diminuir o número de trabalhadores com um programa de demissões voluntárias. Ao menos 800 já aderiram, e a ideia é que sejam 1.140. A empresa tinha cerca de 7.600 funcionários no início deste ano.
Analisá-la durante suas últimas duas décadas estatais exige uma escolha de ponto de vista: a cobertura do sistema foi ampliada, por exemplo. Calcula-se que 75% das moradias da área atual de cobertura acessem água potável, e 61% tenham acesso à rede de esgoto.
Se considerada apenas a área que a AySA herdou do antigo sistema concessionado (a sua cobertura foi ampliada para mais municípios durante o governo de Maurício Macri), essas duas cifras seriam de, respectivamente, 86% e 72%.
Por outro lado, nos últimos anos cresceu o déficit da estatal, calculado em 2023 como de 1,6 bilhão de pesos (algo como R$ 10 milhões). Uma política populista de aumentos comedidos nas tarifas da AySA durante o governo do peronista Alberto Fernández, que antecedeu Milei, tampouco contribuiu para a saúde fiscal da empresa.
No último mês, a estatal anunciou um ajuste de 209% em suas tarifas justificado com a necessidade de “alcançar déficit zero e cobrir custos operacionais sem a necessidade de transferências do Tesouro”.
Moradores que pagavam 5.600 pesos (R$ 32) em abril passaram a pagar 17.500 pesos argentinos (R$ 97) em maio. São valores ainda baratos em comparação com as altas tarifas de outras nações vizinhas, mas, em um momento no qual há um aumento geral nos preços na Argentina, dos alimentos ao gás, isso contribui para a queda no poder de compra.
O que a AySA vive hoje lembra em partes o cenário no início dos anos 1990, quando deixaria de ser a originária Obras Sanitárias da Nação para ser concessionada e se tornar Águas Argentinas. “Todos os trabalhadores estavam desmotivados, já não havia financiamento do Estado e começaram os processos de demissão voluntária”, conta a engenheira hidráulica Laura Bacha, que trabalhava na empresa.
Bacha foi uma dos que decidiram ficar para ver o que ocorreria. E ali permaneceu por 35 anos. É um olhar privilegiado da empresa durante os anos como estatal e como empresa concessionada.
“Quando o grupo francês Suez ganha a concessão, há um investimento absurdo. Cursos no exterior para os funcionários, capacitação, equipamentos novos, equidade de gênero. Colocaram muito dinheiro na análise da água, cuja qualidade mudou da noite para o dia”, afirma a professora da UBA, a Universidade de Buenos Aires.
Até que, na década de 1990, um suposto aumento do nível de nitrato na água e as falhas na expansão do sistema para áreas de baixa renda da região de cobertura foram dados como justificativa para reestatizar a empresa. Mas Bacha diz que foi uma “estatização harmônica”.
O grupo francês assumiu a empresa em uma época de relativa estabilidade econômica na Argentina, algo raro, afinal. Era um momento em que sob o governo de Carlos Menem e uma política de “um por um”, o peso equivalia ao dólar americano. Cenário bem diferente dos anos 2000, iniciados com uma grande crise econômica e social. Já não era do interesse da companhia permanecer ali.
O cenário casou bem com a série de reestatizações que promovia o governo de Néstor Kirchner, morto em 2010, e a empresa voltou para as mãos do Estado. Bacha descreve aqueles anos como de grande crescimento da empresa, que teria começado a retrair na gestão de Macri por problemas internos.
A professora afirma que, entre privatizações e estatizações, o que sempre ditou momentos de boa qualidade do trabalho da empresa foi investimento de peso e boa gestão desses recursos por parte de chefias responsáveis. “Mas às vezes há corrupção, e por isso é preciso fazer um saneamento da empresa, limpá-la”, diz ela.
Sobre a incerteza do período futuro que prevê uma nova concessão, ela lembra que a empresa de hoje é bem diferente da das décadas anteriores. “Nós, os veteranos, que temos toda a história da empresa, já somos mais velhos e nos aposentamos. Essa sim é uma questão.”
Aos que querem conhecer a parte histórica do saneamento da capital argentina e o grande palácio que marcou a sua criação, há um museu no mesmo local que pode ser acessado de segundas a sextas-feiras. Há também visitas guiadas, com horários disponibilizados no site oficial (www.aysa.com.ar/lobuenodelagua/museo).
BREVE HISTÓRICO DA ÁGUA E DO SANEAMENTO EM BUENOS AIRES
– 1912 – Criada a empresa estatal Obras Sanitárias da Nação, primeira encarregada destes serviços na capital e arredores;
– 1993 – A empresa é concessionada para um grupo francês e passa a ser chamada Águas Argentinas;
– 2006 – A empresa é reestatizada por decreto durante a presidência do peronista Néstor Kirchner e é batizada de AySA;
– 2024 – A empresa está prestes a novamente ser aberta a concessões caso a Lei Ônibus ou Lei de Bases, pacotão de medidas econômicas do governo Milei, seja aprovada no Congresso.
MAYARA PAIXÃO / Folhapress