MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) – Nas décadas de 1980 e 1990, grandes capitais europeias concederam a prestação de seus serviços de água e esgoto à iniciativa privada. No entanto, anos depois, cidades como Paris e Berlim acabaram revertendo suas privatizações, num processo que passa por problemas com as empresas que assumiram os contratos e falhas nos modelos regulatórios estabelecidos pelo poder público.
Críticas à qualidade dos serviços, aumentos de tarifa, modelagem contratual equivocada e atuação fraca dos mecanismos de controle ajudam a explicar o movimento de reestatização do saneamento na Europa.
De 2000 a 2015, houve no mundo 235 remunicipalizações de serviços que atendiam a mais de 100 milhões de pessoas. Em 2020, já eram 311, e até agora, em 2024, 364, de acordo com Lavinia Steinfort, geógrafa política e pesquisadora do Transational Institute, uma das instituições por trás da Public Services.
Desses números, grande parte está na França, que abriga 114 cidades, como Lyon, a terceira maior do país, e Bordeaux, no sudoeste do país. Ambas retomaram o controle de suas empresas de saneamento no ano passado.
Em Paris, que viveu 26 anos sob privatização, a remunicipalização foi um processo longo, de sete anos.
O serviço de saneamento de Paris foi privatizado em 1984, quando, numa parceria público-privada, duas empresas, Veolia e Suez, dividiram a cidade entre si.
Um documento do IFC (International Finance Corporation) consultoria ligada ao Banco Mundial que o Governo de São Paulo contratou para conduzir estudos sobre a privatização da Sabesp avaliou experiências internacionais de reestatização.
No caso de Paris, o contrato de prestação dos serviços de abastecimento durou até 2009, um ano antes do prazo final previsto. O processo de remunicipalização, contudo, começou em 2003, com a criação de uma nova companhia pública, a Eau de Paris (água de Paris), e só foi ser concluído em 2010.
Ao decidir não renovar o contrato, o governo reassumiu a prestação do serviço, que já estava praticamente universalizado. Segundo o estudo do IFC, no período de concessão, mais de 1.100 quilômetros de redes foram construídos, com investimentos que reduziram o desperdício de água por vazamentos de 24% para 4%.
No entanto, o contrato também passou por estresses. O documento do IFC avalia que parte dos problemas da concessão em Paris estava relacionada a uma atuação fraca do regulador dos contratos.
O controle de tarifas, por exemplo, só foi introduzido depois do início da concessão. Como estava em maturação, não foi suficiente para mitigar os aumentos nos preços que foram duas vezes maiores que a inflação do país no mesmo período. Isso porque o índice inflacionário adotado era baseado numa cesta de custos, que era descolado da inflação média percebida pela população francesa.
Na avaliação de Steinfort, do Transational Institute, um dos principais problemas da privatização na capital francesa foi a falta de transparência financeira das empresas privadas. “O contrato com o setor privado foi muito rígido, sem espaço para a administração da cidade influenciar e discutir se as pessoas tinham água suficiente ou se era acessível financeiramente para elas”, diz.
Segundo ela, falta de investimentos, alta nos preços e disputas trabalhistas levaram à remunicipalização.
Já o IFC aponta outros problemas. Segundo a consultoria, além dos problemas regulatórios, o fatiamento da cidade entre as duas empresas privadas prejudicou a concessão ao limitar os ganhos de escala do negócio.
Steinfort, que pesquisa reestatização de serviços públicos, transição energética e distribuição de renda, diz que um dos destaques foram as consultas aos funcionários das empresas privadas sobre como os serviços podiam ser melhoradas com a remunicipalização.
O processo foi acompanhada pela criação do Observatório de Água, um corpo independente com representantes de cidadãos, sindicatos, acadêmicos, pesquisadores e especialistas que discutem com a Eau de Paris as melhores estratégias para a água pública.
Segundo a pesquisadora, após a retomada dos serviços pelo município, os preços caíram 8%, e a empresa adotou medidas sociais, como a instalação de mais de 1.200 fontes de água em toda a cidade e criou projetos com agricultores da região para garantir que o uso da água fornecida leve em conta práticas de agricultura sustentável.
Na avaliação feita pelo IFC, após reassumir o contrato de saneamento, o governo local de fato forçou uma redução de tarifas em Paris. No entanto, o nível de investimentos caiu, reduzindo o processo de renovação da infraestrutura.
A Alemanha também passou por um processo de reestatizaçao. Em 1999, a estatal de águas de Berlim vendeu 49,9% de suas ações a duas empresas privadas, uma alemã (RWE Aqua GmbH) e outra francesa (antiga Vivendi, hoje Veolia Wasser GmbH).
Os termos dessa privatização parcial, que valeria até 2028, incluíam quatro anos sem aumentos nas tarifas, uma proibição de demissões por 15 anos e um nível de investimentos de 250 milhões (R$ 1,4 bilhão) por ano nos dez anos seguintes.
Contudo, em 2004 os preços da água aumentaram cerca de 35%, segundo a publicação “Our Public Water Future – The Global Experience with Remunicipalisation” (o futuro de nossa água pública – a experiência global da remunicipalização), do Transational Institute.
“Entre 1999 e 2011, os investidores privados anunciaram lucro de 1,5 bilhão, mas a participação que cabia à estatal nunca foi distribuída, nem sua causa explicada”, afirma a pesquisa. A entidade diz que termos adicionais do contrato garantiram o controle da companhia pelos investidores, embora eles não detivessem a maioria das ações.
O estudo do IFC mostra que um dos motivos para o fracasso da experiência privada em Berlim foi a modelagem incorreta feita pelo governo na época da concessão. Segundo o documento, obrigações contratuais não foram esmiuçadas corretamente.
Um dos desafios, por exemplo, era padronizar e unificar os sistemas de distribuição de água e esgoto na capital alemã. As redes de distribuição da Berlim oriental eram muito mais degradadas que as redes da Berlim ocidental. Isso exigia investimentos diferentes, mas o contrato não detalhava essas peculiaridades.
Outro problema, segundo o IFC, era a exigência de garantir um retorno mínimo de 8% ao operador privado uma espécie de atrativo para as empresas entrarem no leilão. Essa remuneração acontecia por meio de aportes estatais ou aumentos tarifários, o que, na avaliação da consultoria, não incentivou ganhos de eficiência na operação, já que a taxa de retorno estava garantida. A consequência para a população foi só uma tarifa mais cara.
Segundo Steinfort, o descontentamento com a alta de preços levou a um referendo e depois a um processo judicial que exigiu a publicação do contrato privado. A medida revelou que os aumentos decorriam de condições favoráveis que os investidores privados haviam garantido para si, o que levou à remunicipalização.
Em 2012, Berlim obrigou as companhias a reduzirem em 18% as tarifas, por considerar que praticavam preços abusivos e recomprou as ações da empresa alemã. No ano seguinte, fez o mesmo com as ações da companhia francesa.
“No entanto, a remunicipalização de Berlim não foi transformadora no sentido da democratização da água como aconteceu em Paris, que tem contato muito mais direto com a população”, observa Steinfort.
Ela destaca que, após a privatização em Berlim, entre 1999 e 2010, os empregos na área diminuíram 35%. “Após a recompra, essa tendência parou”, diz a geógrafa.
O documento do IFC pondera que, após a remunicipalização, a tarifa em Berlim teve uma redução, mas os investimentos na conservação e renovação da rede de abastecimento diminuíram.
“Mesmo com o fim do modelo de gestão privada em Berlim, é importante ressaltar que durante o período de concessão o sistema de saneamento básico de Berlim recebeu o maior volume de investimentos da história, permitindo grandes melhorias operacionais”, diz o estudo.
IVAN FINOTTI / Folhapress