Por dentro ainda vai demorar, mas nunca quis deixar de viver, diz refém do Hamas por 129 dias

TEL AVIV, ISRAEL (FOLHAPRESS) – Entre tantas histórias de perdas e dor causadas pelos terroristas do Hamas nos ataques do 7 de Outubro, chama a atenção o caso do argentino-israelense Luis Har, 71. Sequestrado dentro de casa, no kibutz Nir Yitzhak, a 2 km da fronteira com Gaza, foi levado junto com sua esposa, Clara, e três parentes dela, além de um pequeno cachorro, que uma das sequestradas manteve escondido sob a blusa.

Nascido em Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, Har passou 129 dias num cativeiro no território palestino, até ser resgatado em fevereiro pelo Exército israelense junto com o cunhado, Fernando Simón Marman, 60, irmão de Clara.

A esposa e as outras duas mulheres do grupo foram libertadas pelo Hamas antes, no fim de novembro, durante a vigência de um cessar-fogo entre os terroristas e Tel Aviv. A família de Har é a única entre os reféns que teve cinco membros sequestrados e soltos sem nenhum ferido ou morto.

Kibutzim como o de Har permanecem intocados. Alguns deles ainda conservam as marcas de sangue pelo chão das casas, mobília carbonizada, janelas quebradas e buracos feitos por disparos de fuzil e de granadas lançadas pelo Hamas no dia do ataque. É o caso de Nir Oz, visitado pela Folha de S.Paulo, que fica 15 km ao norte de Nir Yitzhak.

Com sua casa destruída, Har e Clara vivem hoje com a filha em Or Aqiva, ao norte de Tel Aviv.

A seguir, o depoimento de Har, concedido na sede do Fórum de Reféns e Famílias Desaparecidas, em Tel Aviv, ao lado da chamada praça dos Reféns, onde são feitas vigílias e protestos.

Fui sequestrado na manhã de 7 de outubro em Nir Yitzhak. Os terroristas fizeram um buraco na cerca do kibutz e chegaram até a janela da minha casa. Entraram atirando com fuzis e conseguiram invadir o quarto-forte em que tínhamos nos escondido, mas não nos mataram.

Eles, então, nos jogaram dentro da caçamba de uma caminhonete que estava cheia de fuzis, cartuchos de balas e lançadores de granadas no assoalho. Cinco terroristas subiram junto conosco. Eles tinham os olhos arregalados. Claramente estavam dopados. Tinham um comportamento absolutamente selvagem. A ponta do fuzil que era levado por um deles ficava batendo no meu rosto, conforme a caminhonete se movia em alta velocidade, com todos apertados na carroceria.

Clara [esposa de Har] tentou afastar a ponta do fuzil do meu rosto, mas eu segurei a mão dela dizendo que não devíamos fazer nada que eles interpretassem como uma reação. Falávamos em espanhol entre nós, para que não nos entendessem.

Depois de cruzar a fronteira com Gaza, eles nos desceram da caminhonete e nos obrigaram a entrar num túnel que descia em declive suave. Acho que devemos ter descido uns 40 metros. Ficamos entre três e quatro horas andando numa escuridão total, pisando um chão que era coberto de terra e de cabos. Tenho a impressão de que era um túnel que não estava completo, talvez não tivesse sido terminado ainda. No fim do caminho, eles nos fizeram subir uma escada vertical que me cortava os dedos da mão conforme eu me segurava nos degraus.

A saída do túnel dava ao lado de uma gaiola onde eles criavam perus. Assim que saímos na superfície, eles vestiram as mulheres com véus árabes. Fomos colocados, então, dentro de um carro e avançamos pelo que eu acredito que fosse Rafah [cidade no extremo sul de Gaza], até chegar a uma casa na qual fomos levados ao segundo andar. Ficamos uns dias nessa casa, antes de sermos transferidos para outra na sequência.

Nesses dias de cativeiro, conseguimos estabelecer relação com um dos terroristas, que não andava armado. Ele conversava conosco e era gentil. Parecia ser o dono da casa. Tinha 41 anos. Nós nos comunicávamos como dava: em hebraico, em árabe, em inglês, com gestos, com as mãos, com as pernas. Ele nos disse que não nos preocupássemos, pois ele nos protegeria de seus companheiros e do povoado, porque servíamos para sermos trocados por presos palestinos.

Os demais na casa eram violentos. Andavam sempre armados, eram brutos e gritavam conosco. Todos nos diziam que [Binyamin] Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] nos queria mortos. Eles nos contavam quantos reféns já tinham morrido. Diziam que o Exército israelense estava matando os reféns nos ataques feitos a Gaza. Eles nos perguntavam por que queríamos voltar para casa se, dali a dois ou três anos, eles voltariam a cruzar a fronteira para nos sequestrar e matar.

Éramos cinco pessoas e um cachorro num quarto. Eventualmente, eles nos deixavam abrir uma fresta para olhar pela janela, mas sempre fechavam quando passavam drones de Israel. Eles morriam de medo desses drones. Éramos proibidos de conversar na maior parte do tempo.

Fazíamos uso de um banheiro normal que havia na casa. Passamos vários dias sem água. Quando havia, não era água corrente. A água era racionada. Vinha num balde, e usávamos uma caneca para nos lavar e dar descarga na privada. Não dávamos descarga quando fazíamos xixi, para não desperdiçar. Deixávamos acumular.

No cativeiro, havia uma cozinha. Eles nos traziam o que havia para cozinhar no dia –podia ser batatas, ervilha ou tomate. Eu cozinhava o que havia para cozinhar. Houve vários dias em que não havia nada além de pão sírio para comer. Mas não nos faltaram alimentos nem fomos torturados.

Durante esse tempo, não senti medo. Nós estávamos em choque, na verdade. Estávamos numa situação na qual não sabíamos se viveríamos ou não. Eu estava completamente frio. Tinha decidido fazer o que eles dissessem. Não podíamos enervar ninguém, não podíamos criar nenhum tipo de conflito.

Tenho a sensação de que, do lado de lá [referindo-se ao Hamas], não há com quem falar. Não há diálogo nem negociação possível. Eles me diziam que, se eu tinha nascido na Argentina, deveria voltar para lá, porque os israelenses, cedo ou tarde, serão todos empurrados até o mar.

As mulheres passaram 53 dias em cativeiro até serem trocadas por presos do Hamas, na quinta troca desse tipo. Eu fiquei ao todo 129 dias, junto com o Fernando [cunhado de Har]. As Forças de Defesa de Israel entraram na casa às 2h da manhã [de 12 de fevereiro], pela sacada. Fomos colocados num blindado e, de lá, num helicóptero que nos levou direto para um hospital, do lado israelense. Somos o único caso em que cinco membros de uma mesma família que foram sequestrados e, depois, soltos, sem mortos e feridos.

Hoje, por fora, estou bem. Por dentro é que vai demorar. Às vezes, eu me ponho a chorar [começa a chorar enquanto fala]. Mas precisamos ser fortes e seguir adiante. Eu tento dar força às famílias [dos demais sequestrados]. Gosto de dançar. Danço num conjunto de baile. A primeira coisa que fiz depois de sair do cativeiro foi dançar. Muita gente aqui [em Israel] diz que parou de ter alegria e de viver, de fazer o que gosta, desde o 7 de Outubro. Eu sempre digo a todos: não façam isso. Continuem fazendo o que vocês mais gostam. Não deixem de viver.

O jornalista viajou a convite do StandWithUs Brazil, da Conib (Confederação Israelita do Brasil) e da Fisesp (Federação Israelita do Estado de São Paulo).

JOÃO PAULO CHARLEAUX / Folhapress

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