RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A delação premiada do ex-policial militar Ronnie Lessa, que ampliou o escopo de apuração sobre a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Andesron Gomes, também contrariou outras investigações, buscou livrar corréus em processos na Justiça e minimizar a imagem de “assassino de aluguel”.
Ao longo de sete anexos, Lessa tentou se apresentar como um ex-PM com boas relações entre milicianos e policiais. Negou integrar as quadrilhas, mas reconheceu manter sociedade com os criminosos, explorando desde bingo e gatonet a máquinas de fliperama, de música e até barracas de lanches nessas áreas.
“O meu nome é um nome pesado no meio policial. Muita gente respeita. Milícia, todas elas tinham um grande respeito por mim, apesar de eu nunca ter sido miliciano. Mas eu era amigo de todos”, disse ele.
O papel de miliciano seria assumido como recompensa pela morte de Marielle prometida, segundo ele, pelos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, apontados como mandantes do crime. Eles negam.
A Folha de S.Paulo revelou ao longo da semana detalhes dos sete anexos do acordo firmado com a Polícia Federal e homologado pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
A colaboração permitiu, para os investigadores, o esclarecimento do crime após seis anos de cobrança mundial. A esperada indicação dos supostos mandantes do homicídio veio junto com versões que contrariam outras investigações da própria PF e do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Entenda ponto a ponto a colaboração.
CASO MARIELLE
Lessa descreveu pontos há seis anos em aberto sobre a morte de Marielle e Anderson. Apontou os irmãos Brazão como mandantes e indiciou o envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa, então chefe de Polícia Civil, no planejamento –a principal surpresa do relato.
O ex-PM também indicou a origem e o destino da submetralhadora utilizada e suas munições, não localizadas. Ele apontou milicianos de Rio das Pedras como os responsáveis pela sua ocultação. Afirmou também que a única peça própria utilizada no homicídio, um silenciador, provavelmente foi descartada no mar.
Os relatos atenderam à expectativa da PF de esclarecimento do crime. Porém, permanecem carentes de provas de corroboração, como determina a lei anticrime.
Ele também apontou que os Brazão conseguiram influenciar na investigação de modo a preservá-lo até o fim de 2018. O ex-PM foi preso em março de 2019 quando, segundo ele, Rivaldo havia “abandonado o barco” em razão da pressão pelo esclarecimento do crime.
MAXWELL CORRÊA, O SUEL
Os depoimentos do delator aliviam acusações feitas contra o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o Suel, apontado pelas investigações como o responsável por manter repasses de dinheiro para a família de Lessa após a prisão.
O ex-PM afirmou que Suel não sabia do planejamento do crime contra Marielle, crime pelo qual foi preso no ano passado e pode levá-lo ao Tribunal do Júri.
Lessa confirmou que foi o ex-bombeiro quem disponibilizou o carro com placa clonada usado no homicídio, mas afirma que ele fez isso porque estava envolvido na preparação de outra emboscada, que não foi concretizada.
O delator também afirmou que Suel não participou do descarte de peças de armas em alto mar logo após sua prisão, em março de 2019. O ex-bombeiro já foi condenado pelo crime a 6 anos e 9 meses de prisão, decisão contra a qual não cabe mais recurso.
Num dos depoimentos, Lessa sugere que suas informações mudem o cenário criminal para o amigo.
“É até uma coisa interessante que a gente está falando que, para mim, com essas informações que eu tive até bem recente, podem até novamente mexer sobre isso, trabalhar sobre isso”, disse, sugerindo uma revisão da condenação de Suel.
Ele confirmou, porém, a participação de Suel no descarte do carro após o crime, bem como a exploração.
CRISTIANO GIRÃO
Lessa também buscou mostrar distância do ex-vereador Cristiano Girão, que também figurou como suspeito pela morte de Marielle e Anderson.
Ele afirmou que o ex-vereador não foi o mandante do assassinato do ex-PM André Henrique da Silva Souza, conhecido como André Zóio. Girão foi preso em 2021 e responde na Justiça pelo crime, motivado, segundo o MP-RJ, pela disputa pelo controle da milícia que atuava em Gardênia Azul.
“Eu particularmente não conheço, não quero conhecer. Não conheço seu tom de voz, não conheço sua altura. O que eu tenho dele é simplesmente informações de que ele é um cara arrogante e esse tipo de comportamento não me atrai de jeito nenhum”, afirmou Lessa aos investigadores.
Girão era suspeito na morte de Marielle porque foi um dos primeiros presos em razão das investigações da CPI das Milícias. Ele ficou cumpriu pena em regime fechado entre 2009 e 2017. A vereadora foi morta em março de 2018.
ROGÉRIO ANDRADE
O ex-PM aproveitou os depoimentos para descrever o que chamou de “mística” sobre sua relação com o bicheiro Rogério Andrade. O MP-RJ afirma que Lessa integrou a segurança dele ao menos a partir de 2009.
A relação entre os dois fez com que o bicheiro também fosse incluído entre os suspeitos de ser o mandante da morte de Marielle.
Lessa afirma que conheceu Rogério Andrade apenas em 2010, quando os dois haviam sido alvos de atentados a bomba com características semelhantes. Ele diz que os dois se encontraram para tentar, juntos, identificar o autor das explosões.
“Então, em 2010, eu busquei essa aproximação. De perguntar para ele: ‘Por que tentaram te matar? A bomba’. Porque eu também tinha essa pergunta, e ele também tinha essa dúvida: ‘Quem é esse cara que sofreu um atentado igual ao meu?'”, disse ele aos investigadores, em vídeo obtido pela Folha de S.Paulo.
“Muita gente criou a mística de que eu estava até no carro dele. […] Que eu era segurança dele. […] Ou seja, uma confusão danada. Um mix de especulações. E hoje, muita gente pensa que eu era segurança do Rogério Andrade. Não, eu nunca trabalhei para ele. É a grande realidade.”
O delator confirmou apenas que Andrade se tornou sócio do bingo montado por ele na Barra da Tijuca, fechado pela polícia no dia da inauguração. Para investigadores, esse é um avanço, já que é raro algum investigado confirmar ter se encontrado com o bicheiro.
BERNARDO BELLO
Uma novidade apresentada por Lessa em sua delação foi o plano do bicheiro Bernardo Bello para matar Regina Céli, ex-presidente da escola de samba Salgueiro.
Ele afirma que foi contratado em 2017 por Bello apenas para que o bicheiro pudesse indicar Lessa como um dos ex-PMs ligados à sua quadrilha. Após um tempo sem serviço, ele pediu o planejamento da morte de Céli.
Lessa diz que “empurrou com a barriga” a execução do crime porque estava focado na execução de Marielle. O homicídio da vereadora tinha, segundo ele, um potencial financeiro maior.
OS BENEFÍCIOS
O acordo firmado com a PF prevê o cumprimento de pena de 18 anos em regime fechado, contados a partir da data de sua prisão, em março de 2019. Depois desse período, o contrato estabelece dois anos em regime semiaberto e outros dez em livramento condicional.
O contrato indica que a pena em regime fechado será cumprida num presídio estadual, indicando São Paulo como destino.
Esse ponto gerou queixas da defesa do ex-PM. O advogado Saulo Carvalho, que representa Lessa, chegou a pedir a rescisão do acordo porque a transferência não foi feita após a homologação, como previsto no contrato. A PGR (Procuradoria-Geral da República) afirmou que está buscando junto ao governo paulista uma vaga para Lessa.
Nesta sexta (7), o ministro Alexandre de Moraes determinou que ele seja transferido para o presídio de Tremembé, no interior de São Paulo.
ITALO NOGUEIRA / Folhapress