BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – As desconfianças e atritos nas relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos têm raízes que remontam à época do Império, segundo o ex-embaixador brasileiro em Washington Rubens Barbosa.
O diplomata escreveu um dos capítulos da obra “Uma Parceria Bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos”, lançado no fim de maio, no Itamaraty, como parte das celebrações dos 200 anos do relacionamento bilateral.
Coube a Barbosa um olhar histórico sobre a diplomacia entre os dois países, e ele começa seu texto questionando o próprio marco inicial: o encontro em Washington do encarregado de negócios do Império, José Silvestre Rebello, com o presidente James Monroe, em 26 de maio de 1824.
“O governo brasileiro saudou o encontro como o reconhecimento da independência, embora o governo norte-americano não tivesse emitido nenhuma declaração nesse sentido e continuasse a tratar de todos os assuntos diretamente com Lisboa e não com o Rio de Janeiro”, escreve Barbosa no texto.
“O estabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e os EUA só ocorreu por acordo firmado, entre os dois países, em 29 de outubro de 1825, depois que Portugal e a Grã-Bretanha reconheceram a independência do Brasil. Os EUA não quiseram se atritar com Portugal. O primeiro país a reconhecer a independência não foi nem os EUA nem a Grã-Bretanha; foi a Argentina, em 1823, por razões relacionadas com a disputa pela Província Cisplatina, hoje o Uruguai”.
Apesar da divergência de datas levantada por Barbosa, o governo americano passou a reconhecer o marco do bicentenário como 26 de maio.
Barbosa, que chefiou a embaixada em Washington de 1999 a 2004, discorda da tese de que o início da relação bilateral Brasil-EUA tenha sido suave. Ele diz que, nas primeiras décadas, já se identificava um clima de “desconfiança e suspeitas”.
A explicação estaria principalmente na diferença dos regimes políticos. No Norte, uma democracia que propagava valores republicanos. No Brasil, uma monarquia.
“Os EUA consideravam o regime monárquico no Brasil uma anomalia, e o Brasil percebia os EUA como um foco de subversão”, escreve o embaixador. “Os EUA consideravam o Brasil como o representante da Europa na América e viam com preocupação o surgimento no sul do continente de um país independente que poderia rivalizar com Washington”.
O diplomata destaca ainda que Washington se envolveu de alguma forma em diferentes crises domésticas no Brasil. A ingerência americana prossegue o autor levou o Império a suspender em três ocasiões as relações diplomáticas: em 1827, 1847 e 1869.
De acordo com Barbosa, as desconfianças ficaram evidentes nas maiores crises militares que assolaram tanto os EUA como o Brasil no século 19.
Na Guerra Civil Americana (1861-1865), o Império adotou posição ambígua. Embora oficialmente neutro, ajudou os Confederados ao permitir que navios sulistas atracassem em portos brasileiros.
Anos depois, Washington deu o troco ao apoiar o Paraguai na guerra contra o Império brasileiro (1864-1870). “A guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai em 1865 esteve presente no relacionamento do Brasil com os EUA. Os EUA também se envolveram na guerra, estimulando o governo de Assunção, fornecendo armas ao lado paraguaio e até oferecendo mediação, recusada pelo Brasil”.
Em seu texto, Rubens Barbosa diz que houve ainda outro episódio que estremeceu a relação. Abraham Lincoln, presidente que liderou a União durante a Guerra Civil americana, propôs a transferência de parte da população negra no país para fora dos EUA. Uma das ideias, impulsionada pelo então enviado americano ao Brasil James Watson Webb, era que o local escolhido fosse o norte do rio Amazonas.
“Associada ao destino manifesto de expansão de suas fronteiras, a iniciativa encontrou reação do governo brasileiro. Havia a percepção por parte do governo brasileiro de que os EUA alimentavam o propósito de conquistar aquela região. A ação diplomática e o silêncio de Dom Pedro 2º foram responsáveis pelo fim dessa ideia, que implicaria a cessão de território, como ocorreu com a concretização dessa iniciativa na Libéria”, diz Barbosa.
“A suspeita foi reforçada pela pressão de Washington para a abertura, se possível de forma pacífica, pela força se necessário, do rio Amazonas. As pressões para a abertura do rio Amazonas à livre navegação despertavam a suspeita de que a Amazônia poderia ser perdida para os EUA. O Brasil não cedeu e o rio Amazonas permaneceu fechado, afastando-se a perspectiva de formação de colônias norte-americanas”.
O ex-embaixador avalia que esses acontecimentos podem estar no “subconsciente nacional” em relação à preocupação com o interesse de potências estrangeiras sobre a Amazônia, algo que persiste até hoje.
As relações EUA-Brasil melhoraram a partir da década de 1870. De acordo com Barbosa, isso ocorreu pelo crescimento do comércio bilateral e pelo fortalecimento de Washington como uma potência de alcance mundial.
RICARDO DELLA COLETTA / Folhapress