Modelo de câmeras com gravação ininterrupta de SP foi escolhido por ter alerta ‘antipilantra’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um sistema à prova de pilantra. Foi assim que o coronel Robson Cabanas Duque, então coordenador do programa Olho Vivo, definiu a funcionalidade “grava tudo” das câmeras corporais da Polícia Militar de São Paulo, que possibilita a filmagem ininterrupta de imagens de todo o turno de trabalho do policial.

A afirmação foi feita em abril de 2021, quando o PM explicou à Folha de S.Paulo a novidade a ser implantada no policiamento paulista e os motivos que levaram a então gestão João Doria a optar por uma tecnologia inédita nas polícias do mundo, que se tornou alvo de bolsonaristas, entre eles o hoje governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

A discussão sobre as câmeras voltou a ganhar força nos últimos dias em razão da licitação do governo paulista que prevê a aquisição de um modelo de equipamento sem o sistema que dificulta a vida de policiais mal-intencionados.

O edital lançado por para a aquisição de 12 mil câmeras deixa sob responsabilidade dos policiais na rua a ligação do equipamento. Para especialistas, trata-se de um retrocesso. A empresa Motorola venceu o pregão.

Conforme explicou o oficial na época, o modelo com botão liga e desliga, conhecido até então, apresentou muitos problemas durante as fases de teste e início de implantação na PM paulista e com outras experiências pesquisadas mundo afora.

“Nós tivemos muitos problemas de compliance [cumprimento das regras], de não ligarem a câmera quando tem que ligar. Quando o policial recebe uma ocorrência, ele tem que ligar a câmera imediatamente. Ou quando ele vai abordar uma pessoa, ele tem que ligar. Só que o nosso policial aborda, depois que ele revistou a pessoa ele aciona a câmera”, diz o coronel.

O programa de SP vinha sendo testado desde 2013. Um dos casos citados como exemplo de problemas encontrados no sistema antigo, com o botão liga e desliga nas câmeras, envolveu a apreensão de dinheiro realizada por PMs no centro da capital. Segundo Cabanas, um suspeito fugiu deixando para trás uma bolsa.

“Aí a hora que o policial pega, achando que era droga, ele abre e tem uma pacoteira de dinheiro. Um cochicha um negócio com o outro, o cara pega e desliga a câmera. Era a câmera do sistema antigo. Depois volta com o dinheiro todo contado numa mesa. Então, a gente falou: ‘Opa, corregedoria’. Estão lá apurando. Pode não ter sido nada, como pode ter sido tudo”, disse.

Com a tecnologia de gravação ininterrupta, explicou ele, esse tipo falha —intencional ou não— seria eliminado porque o aparelho começava a grava o turno de serviço tão logo fosse retirado da doca de reabastecimento. O software do sistema também seria capaz de avisar se a câmera foi desligada em algum momento do trabalho.

“Se ele encontra um tempo de stand-by menor do que a câmera deveria ter, que é a escala de 12 horas, ele manda um aviso, um alerta, de que aquela câmera tem um pedaço de tempo que não gravou e deveria ter gravado. O sistema é à prova de pilantra. É impressionante”, afirmou.

O coronel complementou, em outro momento. “Quando o policial recebe essa instrução, ele recebe tudo isso detalhadamente, ele fala: ‘cara, não tem como dar chapéu nisso daqui’. A única coisa que um criminoso policial pode fazer, assim que chamo um criminoso que usa farda e não deveria usar, é o cara pegar isso aqui [câmera] e jogar fora. Só que eu vou ver ele fazendo isso.”

Após os primeiros meses com a câmera “grava tudo”, contou Cabanas, a experiência de São Paulo despertou interesse de muitos estados brasileiros e até de policiais de fora do país.

Isso porque, segundo ele, era um problema internacional o botão de desligar das câmeras. Na Inglaterra, no início da implantação das câmeras, apenas 17% dos policiais cumpriam as orientações corretamente de acionamento da gravação.

Foram necessários cerca de três anos de trabalho de conscientização para que esse número superasse os 90%.

Nos Estados Unidos, ainda segundo ele, o modelo de câmeras com o botão liga e desliga era foco de críticas da ACLU (American Civil Liberties Union), a maior organização de direitos humanos dos EUA.

“Ela critica as bodycams americanas pelo fato de os sindicatos de policiais não permitirem que as câmeras gravem o turno todo. Fica na vontade do policial ligar a câmera. Eles falam que isso é injusto, porque o policial nunca liga quando a situação é ruim pra ele”, disse o oficial.

Cabanas disse que as poucas críticas sobre o modelo “grava tudo” vinham de um grupo pequeno de PMs e da família Bolsonaro.

“Olha, eu vi o filho do presidente Bolsonaro falar umas bobagens, o Eduardo, mas os seguidores dele foram contra ele. Eu li os seguidores. Tinha uns apoiadores que a tudo dizem amém, né? Mas uns falavam: ‘Eu não concordo, não. Acho que tem que ter câmera mesmo’. Outra: ‘eu também acho que tem que ter câmera’. Falei: ‘Então, a sociedade sabe’”, afirmou o policial.

O uso das COPs (câmeras operacionais portáteis) é apoiado por 88% dos moradores da cidade de São Paulo, segundo pesquisa Datafolha divulgada em março deste ano. Oito em cada dez entrevistados disseram que os equipamentos devem ser usados por todos os agentes e que a medida pode contribuir para impedir ações violentas.

Além das vantagens do sistema “grava tudo”, como melhor qualidade de provas, Cabanas afirmava que conhecer todo o contexto de uma ocorrência oferecia uma oportunidade de análise mais justa dos casos. Citou como exemplo o vídeo que mostrava um PM pisando no pescoço de uma mulher já caída, na zona sul da capital paulista, em 2021.

O vídeo compartilhado não mostrava, entretanto, que o policial tinha sido agredido momentos antes pela mesma mulher. “Não justifica nada o que o policial fez. Mas você dá o contexto da situação. Eu acho que isso é justiça. A gente não quer proteger ninguém. O cara fez errado, tem que pagar pelo que ele fez, mas tem que ser justo.”

Cabanas passou para reserva no início do ano passado, logo após o capitão da reserva Guilherme Derrite assumir a pasta da Segurança Pública. Desde a eleição de Tarcísio de Freitas, o oficial havia deixado de falar do programa. Procurado pela Folha de S.Paulo, por meio de colegas da corporação, ele preferiu não falar.

Como a Folha de S.Paulo mostrou, as novas câmeras farão reconhecimento facial e leitura de placas de veículos. Terão ainda funcionalidades como melhoria na conectividade, com possibilidade de transmissão ao vivo para solicitar apoio para as ações, segundo a secretaria.

De acordo com a pasta. a expectativa que a licitação promova uma economia de 30% a 50% para os cofres públicos em relação ao contrato anterior.

ROGÉRIO PAGNAN / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS