Como intensidade teatral de Chico Buarque aparece com frequência em suas músicas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No início de 1965, o grupo estudantil de teatro ligado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o TUCA, estreou “Morte e Vida Severina”, a partir do poema teatral de João Cabral de Melo Neto. O espetáculo fez sucesso, viajou para o Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França, e ajudou a reanimar formas de arte críticas e políticas num Brasil ainda atordoado após o baque que fora o golpe militar de 1964. Uma parte crucial da comoção causada pelo espetáculo foram as canções criadas a partir do poema por um jovem compositor e estudante de arquitetura chamado Francisco Buarque de Hollanda.

Já no ano seguinte, a carreira musical de Chico Buarque ascenderia rápido como um foguete. Em 1966 ele grava o seu primeiro disco e a canção que abre o LP, “A banda”, divide o primeiro lugar do Festival de Música Popular Brasileira na TV Record com “Disparada” de Geraldo Vandré e Théo de Barros. A partir daí, o músico ocupa as paradas de sucesso das rádios, vive entre shows e programas musicais na TV e vende discos como poucos.

Mas apesar da entrada veloz e intensa do compositor nos circuitos da canção popular, sua conexão com o teatro não se desfez. Pelo contrário. Em 1980, uma edição do jornal Poramdubas da PUC-SP foi dedicada ao espetáculo “Morte e Vida Severina”, que estreara 15 anos antes. Em depoimento sobre o trabalho com o grupo, Chico Buarque conta que “morte e vida foi um grande impulso profissional” e afirma: “nunca mais abandonei o teatro”.

É verdade. Dos anos 1960 até o início da década de 1980, quando dá a entrevista, Chico Buarque escreveu um conjunto de peças que se tornaram clássicos do teatro moderno brasileiro. Além disso, compôs trilhas para vários espetáculos e foi um interlocutor constante de importantes artistas e pensadores do teatro brasileiro, como seu amigo Augusto Boal, diretor do Teatro de Arena nos anos 1960 e o remetente de sua carta-canção “Meu Caro Amigo” lançada em 1976, quando Boal vivia no exílio.

Algumas de suas mais emblemáticas composições do período estão ligadas ao seu trabalho com teatro, como, por exemplo, “Roda Viva”, “Tatuagem”, “Fado Tropical”, “Mulheres de Atenas” (que Chico compôs a pedido de Boal, para a adaptação que o diretor escrevia da comédia “Lisístrata” de Aristófanes); “Folhetim” ou “Geni e o Zeppelin”, a formidável releitura da canção “Seeräuber-Jenny” que Bertolt Brecht e Kurt Weill compuseram para a “Ópera de Três Vinténs”.

A conexão entre o músico Chico Buarque e o mundo do teatro nos anos 1960 e 1970 não foi um caso isolado. Era um momento em que teatro e canção andavam juntos no Brasil. Parte da genealogia da MPB encontra-se nos espetáculos e musicais da segunda metade de 1960. Foi no espetáculo “Opinião”, por exemplo, que Maria Bethânia despontou, em 1965, ainda muito jovem, com sua espantosa interpretação de “Carcará”, música de João do Vale. Alguns dos grandes hinos da canção de protesto no início da ditadura foram criados para os palcos do teatro ou impulsionados por espetáculos musicais, como a canção “Tempo de Guerra”, de Edu Lobo, composta para “Arena conta Zumbi”.

Em paralelo, as apresentações das canções nos famosos Festivais da Música Popular Brasileira dos anos 1960 eram pensadas também como números teatrais, com ênfases, gestos e olhares ensaiados, além de marcante atitude cênica nas interpretações.

No Festival de 1967, Chico Buarque foi um dos finalistas com “Roda Viva”, canção que empresta o nome e é o coração da primeira peça de teatro escrita pelo músico. A peça é uma paródia da indústria fonográfica e do processo trágico de mercantilização das canções (mesmo as de protesto) e dos estilos musicais no período. Ou seja, o artista que vivia o estouro de sua carreira musical, alavancada pela milionária indústria de discos, escreve uma peça de teatro que mostra essa mesma indústria espremendo até o limite e depois descartando um músico popular. O teatro feito de espelho crítico do lugar que o próprio autor ocupava como músico.

José Celso Martinez Corrêa, diretor do Teatro Oficina, foi convidado a dirigir o espetáculo no Rio de Janeiro e buscou intensificar a atitude irreverente da peça. Para isso, convidou um coro de jovens estudantes eletrizados pelo espírito da contracultura de 1968. Durante o espetáculo, o coro rompia o enquadramento do palco e mergulhava, sensual e violentamente, sobre o público. Era algo novo, inesperado, e funcionou como um choque no ambiente teatral do período. “Roda Viva” se tornou um dos mais emblemáticos espetáculos brasileiros dos anos 1960.

Alguns anos depois, entre 1973 e 1978, Chico Buarque escreve outras três peças: “Calabar – o Elogio da Traição”, em 1973, junto ao amigo e cineasta Ruy Guerra; “Gota d’Água”, em 1975, uma transposição da tragédia “Medeia” para os subúrbios cariocas, escrita junto com Paulo Pontes; e “Ópera do Malandro”, em 1978, adaptação das peças “Ópera dos Mendigos” de John Gay e “Ópera de Três Vinténs” de Brecht, numa versão que se passa no Rio de Janeiro dos anos 1940.

É sempre o Brasil a figurar em todos os seus textos teatrais. Mas o conjunto dá notícias também de um tipo de sensibilidade que percorre boa parte da obra de Chico Buarque, no teatro e na canção. São textos que fazem conviver o humor paródico, sempre presente, com uma profunda atenção pelas margens da sociedade, personagens humilhados e abandonados, cujos corpos frágeis já envergaram com o peso do mundo.

Em “Calabar”, apesar do título, é Bárbara, a viúva do traidor, dilacerada por dentro, esmagada entre veleidades masculinas e coloniais, que conduz o andamento da trama. Em “Gota d’Água” é a dor cheia de raiva de Joana, nossa Medeia tropical, descartada por Jasão, que modula toda a peça. Mesmo na “Ópera do Malandro”, cuja trama gira em torno de temíveis contrabandistas, policiais e cafetões, são, na verdade, as mulheres e travestis pobres relegadas à prostituição, vítimas de um violento processo de estrago social, que impõem o ângulo de leitura e ajudam a criar as cores da paródia sobre a flexibilidade da moral no capitalismo periférico brasileiro.

É como se, ali, na sina triste e solitária daquelas para as quais ninguém olha, surgisse uma imagem singela e precisa do país e de suas tragédias. Esse modo próprio de sentir a dor e de falar com a voz do outro, atributos de grande intensidade teatral, tornam-se componentes fortes no lirismo musical de Chico Buarque. São inúmeras as canções na quais o compositor assume tais pontos de vista, eus líricos vários, uma coleção de personagens. Dito de outro modo, o teatro comparece frequentemente em sua música.

Mas não qualquer teatro. As peças de Chico Buarque possuem características estruturais sofisticadas e experimentais que remontam à melhor tradição do teatro político do século 20 e recusam o encadeamento clássico do drama burguês. A inserção sistemática de coros e canções cria cortes e estranhamentos na cena, tal como defendia Bertolt Brecht para o seu teatro épico e dialético. Nas peças do compositor brasileiro, a música entra às vezes como comentário sobre as personagens, às vezes como contraponto crítico ao que foi dito antes, às vezes como paródia, mas sempre a interromper o enlevo dramático e a sua máquina de produzir identificação emocional.

Conta-se que, a despeito de não gostar nada de música, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto assistiu na Europa à montagem de “Morte e Vida Severina”, do TUCA, e teria ficado comovido com o contraste entre a cena e as composições de Chico Buarque a partir de fragmentos de seu poema. Talvez tenha pressentido ali algo que buscava para a poesia: “Uma linguagem em que o leitor tropece, não uma linguagem em que ele deslize”; “Uma coisa que me acorde, e não uma coisa que me embale”.

PAULO BIO TOLEDO / Folhapress

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