Após 18 anos, influente estudo sobre Alzheimer pode ser retratado devido a imagens manipuladas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um influente estudo sobre Alzheimer pode estar a caminho de ser “despublicado”, o que no universo científico é chamado de retratado, ou seja, os resultados devem ser desconsiderados. Após imagens manipuladas terem sido encontradas na pesquisa publicada em 2006 na Nature, todos os sete autores -menos Sylvain Lesné, o primeiro autor- parecem dispostos a pedir a retratação da publicação, o que a tornaria um dos estudos com mais citações a ser retratado.

A decisão sobre pedir a retratação foi anunciada, em maio deste ano, por Karen Hsiao Ashe, professora do Departamento de Neurologia da Universidade de Minnesota e a autora correspondente -normalmente, pesquisadores mais experientes- no PubPeer, uma espécie de fórum online para discussões de artigos científicos revisados por pares.

“Como autora correspondente, assumo a responsabilidade por esta decisão [retratação]”, escreveu Ashe, em uma publicação em que diversas pessoas comentavam as manipulações de imagens identificadas na pesquisa.

Segundo a pesquisadora, ao tomar conhecimento em maio de 2022 das imagens manipuladas, considerou-se a ideia de já retratar o estudo, que reúne mais de 2.300 citações -uma métrica que ajuda a dimensionar a importância de uma pesquisa é quanto ela foi citada em outros trabalhos-, segundo o Web of Science, valor tido como elevado.

“No entanto, acreditando nas principais conclusões do artigo, nomeadamente a existência de A?*56 e seu papel na deterioração da memória, meus colegas e eu decidimos contra a retratação imediata a favor de repetir os experimentos do artigo para validar os resultados”, escreveu a pesquisadora Ashe.

No artigo em si, no site da Nature, ainda consta o mesmo aviso, desde 2022: “Os editores da Nature foram alertados sobre preocupações relacionadas a algumas das figuras deste artigo. A Nature está investigando essas preocupações, e uma resposta editorial adicional será fornecida o mais rápido possível. Enquanto isso, aconselha-se que os leitores tenham cautela ao utilizar os resultados reportados”.

Procurada pela reportagem, a revista afirmou que no momento não tem mais informações sobre a pesquisa e que “esperam compartilhar o resultado da investigação em breve”.

A A?*56 (leia beta-amilóide estrela 56) é uma proteína beta-amilóide específica. O trabalho posto em xeque sugere que ela prejudica a memória, mesmo sem a formação de placas ou perdas neuronais. Essa proteína também poderia contribuir, segundo o estudo desenvolvido em camundongos, para os déficits cognitivos do Alzheimer.

Isso poderia significar, em linhas gerais, um alvo terapêutico para o Alzheimer, ou seja, os pesquisadores poderiam mirar essa proteína para combatê-lo, afirmou Diogo Haddad, neurologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.

Esse fato já explica a potencial importância dos resultados dessa pesquisa de quase 20 anos atrás.

A questão é que outros pesquisadores que tentaram olhar para a A?*56 não conseguiram observar a mesma importância que a pesquisa de Lesné via, segundo Mychael Lourenço, neurocientista e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

“Já não era levado com muito crédito pela literatura [científica]”, diz Lourenço.

Apesar de optar pela retratação da pesquisa, Ashe disse ter conseguido reproduzir os experimentos e principais resultados apresentados no estudo da Nature e os publicou na revista iScience, que faz parte do catálogo da Cell Press.

“É incontestável que a deturpação de dados […] representa um desafio significativo para a credibilidade da pesquisa científica […]. Embora eu não tivesse conhecimento de qualquer manipulação de imagens no artigo publicado até que isso me foi trazido à atenção dois anos atrás, é claro que várias figuras em Lesné et al. (2006) foram manipuladas”, afirmou Ashe no PubPeer no mês passado. “Como não consegui obter os dados brutos, optei pela replicação dos experimentos para sublinhar a confiabilidade dos dados.”

Curiosamente, ainda em maio, antes de anunciar a retratação, Ashe chegou a dizer que era contra a “despublicação” da pesquisa.

“Eu penso que todos os cientistas sérios e honestos concordariam que distorcer dados é errado. No entanto, também acredito que é antiético retratar um artigo no qual ‘os principais achados do trabalho são confiáveis'[…] porque fazer isso seria literalmente uma negação da verdade científica. Dois erros não fazem um acerto”, disse Ashe.

“Na minha opinião, a melhor solução para todos -eu, meus colegas, a Nature, a comunidade científica e o público- é corrigir o registro. Esse assunto poderia ser efetivamente abordado publicando uma correção de autor. Espero que isso possa ser realizado de maneira responsável e transparente”, afirmou a cientista, antes de, em outra postagem, falar que a pesquisa seria retratada.

A reportagem tentou contato por email com Ashe e com Sylvain Lesné, que também é docente do Departamento de Neurociência da Universidade de Minnesota. Até o momento, não houve resposta de nenhum dos dois.

QUAL É O IMPACTO PARA OS PACIENTES?

Os especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que, apesar de o estudo em questão ter um elevado número de citações, a sua possível retratação não impacta pacientes ou tratamentos.

Primeiro, o que se sabe sobre as formas de prevenção de demências -o Alzheimer é uma das principais- e parte das causas permanece igual. Ou seja, continuamos com as informações sobre as variantes genéticas ligadas à doença e os fatores que parecem ser associados a ela, como condição socioeconômica ruim, menos educação formal, deficiência de vitamina D, diabetes, doenças do coração, depressão e isolamento.

Além disso, mesmo que o estudo em questão acabe retratado, as placas amilóides continuarão sendo tidas como um componente relevante no Alzheimer, afirmam os especialistas ouvidos pela reportagem.

“Todos nós temos proteínas amilóides, que podem ir se acumulando, juntando-se e acabar formando as placas”, disse Haddad.

“Sabemos que a placa amilóide tem uma relação direta com a doença. Tem pessoas que têm a placa e não tem a doença. Mas todas as pessoas que têm Alzheimer têm placas amilóide”, afirmou o especialista.

Segundo Haddad, a placa tem relação com a doença, mas ela sozinha não é a doença. Existem ainda outras questões associadas, como a também já bem conhecida proteína tau e processos inflamatórios. “A parte amilóide é um dos conceitos. Possivelmente a doença seja muito maior que isso.”

Em questão de tratamento, a retratação não deve provocar efeitos também. Segundo os especialistas, as medicações recentemente aprovadas no exterior para uso contra Alzheimer -uma delas, inclusive, neste mês- e mostram algum potencial benefício não são focados na A?*56.

Dessa forma, o impacto de uma retratação do estudo fica mais restrito à área científica, o que ainda não significa um impacto pequeno, especialmente pensando que se trataria da “despublicação” de um grande estudo publicado na Nature, uma das revistas científicas mais respeitadas no mundo.

PHILLIPPE WATANABE / Folhapress

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