SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Conflitos que ameaçam destruir famílias. Diálogos com alta voltagem melodramática. Reviravoltas que deixam personagens aturdidos e espectadores boquiabertos. A linguagem é de novela, mas o ritmo e a estética sinalizam que estamos diante de uma obra diferente.
“Pedaço de Mim” chega no dia 5 de julho ao catálogo da Netflix unindo o melodrama dos folhetins à concisão das séries. Antes vistos como rivais na preferência do público, esses dois gêneros agora estão irmanados na nova aposta do gigante do streaming.
Não à toa, a plataforma escalou um elenco repleto de ex-estrelas da TV Globo, emissora que se firmou ao longo dos anos como a principal produtora de novelas do Brasil.
Na tela, vemos Juliana Paes dar vida à Liana, uma terapeuta ocupacional que sonha em ser mãe. Casada com o advogado Tomás, personagem de Vladimir Brichta, ela descobre uma traição e decide exorcizar a tristeza na pista de dança. Nessa noite, porém, sua vida começa a descarrilhar.
Após ser vítima de um abuso sexual, a personagem não apenas descobre que está grávida de gêmeos, mas que sua gestação é um achado científico. Uma das crianças é de seu marido, a outra é do homem que a violentou.
Essa é uma condição raríssima conhecida como superfecundação heteroparental, gravidez na qual dois óvulos da mesma mãe são fecundados por pais diferentes. Até hoje, foram registrados cerca de 20 casos em todo o mundo.
“Eu estou grávida do bebê que eu mais desejei na vida e estou grávida de uma coisa que eu rejeito, que eu não quero ter”, diz Liana para Sílvia, personagem de Paloma Duarte.
É uma trama que ecoa os dramas familiares tão comuns às novelas brasileiras. A exemplo de clássicos televisivos como “Por Amor”, de Manoel Carlos, ou de “Senhora do Destino”, de Aguinaldo Silva, a nova atração da Netflix traz a maternidade como pano de fundo.
No entanto, diferente dessas tramas, “Pedaço de Mim” é uma obra enxuta de 17 episódios. O número é bem menor do que o das novelas tradicionais, que ficam meses no ar, mas superior aos das séries que a Netflix costuma produzir.
“É uma série de melodrama que se vale muito de elementos do folhetim explorados em novelas. De alguma forma, a gente surfou em uma praia que a gente já conhecia”, diz Vladimir Brichta. “Foi um processo híbrido bem interessante de ser feito.”
“Pedaço de Mim” é anunciada em um momento em que outras plataformas de streaming se voltam à produção de novelas.
Estrelada por Camila Pintaga, “Beleza Fatal” será o primeiro folhetim brasileiro da Max. A empresa também está produzindo “Dona Beja”, que terá Grazi Massafera no papel principal. Já em 2022, a Globoplay levou ao ar “Todas as Flores”, primeira trama produzida exclusivamente para a plataforma.
Se por um lado as novelas entram no streaming, por outro passam por uma crise na televisão. Atualmente, a teledramaturgia não consegue ter a mesma repercussão nem atingir a mesma audiência do passado. Diante desse cenário, pairam incertezas sobre o futuro dos folhetins.
“A telenovela era hegemônica porque não tinha outras opções. Então dava 50 pontos de ibope. Não vai dar mais”, diz Vladimir. “Mas sempre vai ter um público para ver a novela na TV aberta.”
Opinião parecida tem Juliana Paes, para quem esse gênero é um traço cultural definidor do país. “É um produto made in Brasil que sempre vai existir, mas agora o público vai ficar dividido”, diz ela, referindo-se às outras opções de entretenimento disponíveis.
Não é só o poder de escolha do público que aumentou. À medida que as séries se popularizaram por aqui, a exigência dos espectadores também cresceu.
Hoje, narrativas com personagens caricatos e interpretações exageradas tendem a ser motivo de piada e crítica. Por isso, Juliana escolheu um registro mais realista ao encarnar a protagonista de “Pedaço de Mim”.
“Não é preciso acentuar o melodrama, entregar tudo e chorar demais. A gente não subestimou o público.” Isso não quer dizer que a produção economize na carga dramática. Pelo contrário.
O enredo confronta a protagonista com dilemas de difícil resolução e aborda temas que estão na ordem do dia, como aborto e violência sexual.
As discussões em torno desses assuntos ficaram ainda mais candentes após a Câmara dos Deputados aprovar a urgência do PL Antiaborto por Estupro.
A medida equipara a pena de aborto à de homicídio para procedimentos realizados em caso de estupro quando a idade gestacional é superior a 22 semanas. Se aprovado, o texto pode levar meninas abaixo dos 18 anos a ficarem internadas em estabelecimentos educacionais por até três anos.
“Quando eu vi as notícias, falei: Meu Deus! São todos os assuntos que a série acaba abordando”, diz Juliana, que se posicionou contra o PL nas redes sociais.
“A gente está em 2024. Não podemos mais tratar o direito de escolha das pessoas como algo passível de discussão por terceiros.”
A atriz afirma ainda que aborto é uma questão de saúde pública que precisa ser debatida de forma responsável. “Não dá para resolver por homens e de um jeito leviano.”
Para ela, outro assunto que merece debate é a imposição da maternidade às mulheres. A protagonista de “Pedaço de Mim” é movida por um desejo irrefreável de ser mãe. Ela acaba passando por cima dos outros e de si mesma para concretizar esse ideal.
“Acho que pela primeira vez eu me questionei de onde vinha o meu desejo de ser mãe”, diz a atriz, acrescentando que o caminho esperado de uma mulher é casar e ter filho por influência do machismo.
“Claro que eu amo a vida com os meus filhos, mas eu nunca tinha parado para pensar se era um desejo genuíno ou se era algo que a gente vai na toada achando que tem que ser assim mesmo.”
Falar sobre a posição da mulher na sociedade é justamente um dos objetivos da série. “A gente está querendo debater de maneira mais aprofundada o machismo. Vire e mexe, percebemos retrocessos nessa questão”, diz Angela Chaves, autora de “Pedaço de Mim”.
Ela trabalhou por mais de duas décadas na TV Globo, empresa na qual escreveu “Éramos Seis”. Para ela, a mudança de plataforma exigiu concisão, mas também deu mais liberdade.
Por esse motivo, conseguiu falar de assuntos que teriam sido difíceis de abordar na televisão. “Foi o caminho para aprofundar alguns temas sem ficar no maniqueísmo.”
Diretor da série, Maurício Farias acrescenta que o projeto ofereceu a possibilidade de unir saberes em um novo formato.
“Foi um ponto de encontro entre as séries que se fazem no mundo e as novelas produzidas no Brasil”, diz ele, que também é egresso da TV Globo. “‘Pedaço de Mim’ inaugura e abre caminho para essa convergência de conhecimentos e experiências.”
PEDAÇO DE MIM
Quando 5 de julho
Onde Netflix
Autoria Angela Chaves
Elenco Juliana Paes, Vladimir Brichta, Felipe Abib, Palomma Duarte
Direção Maurício Farias
MATHEUS ROCHA / Folhapress