Gestão administrativa da escola interfere no pedagógico, diz economista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É com desconfiança que os projetos dos governos do Paraná e de São Paulo de terceirizar parte da administração de escolas públicas são vistos por Ricardo Henriques, 64, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, que dá apoio a redes de ensino estaduais para melhorar a gestão escolar.

A parceria com empresas privadas para a administração de escolas está em programas anunciados pelos governos de Ratinho Júnior (PSD) e Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ambos negam que as empresas terão ingerência na parte pedagógica, embora, no caso paranaense, elas serão também responsáveis pela contratação de professores substitutos, controle de frequência de alunos e definição de metas para o corpo docente -a princípio em 204 escolas. Em SP, o programa se coloca como restrito à construção e à administração predial de 33 escolas.

Ainda assim, para Henriques, é preciso muito cuidado, porque “a gestão administrativa interfere no pedagógico, são completamente imbricados”.

“Exemplos relevantes de educação de qualidade no mundo indicam que a gestão pública que articula o pedagógico com dimensões do administrativo produz círculos virtuosos”, afirma o executivo, que já foi secretário nacional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC (2004-2007) e secretário-executivo do Ministério de Assistência e Promoção Social (2003-2004), quando atuou na implementação do Bolsa Família.

O Instituto Unibanco, que nesta semana realizou em São Paulo um seminário internacional sobre gestão educacional, atua no apoio de seis secretarias de Educação do país (Ceará, Piauí, Minas, Goiás, Espírito Santo e Rio Grande do Sul).

Na entrevista a seguir, Henriques, além de apontar os riscos de uma administração terceirizada de escolas públicas, critica as escolas cívico-militares, bandeira de Tarcísio.

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PERGUNTA – Como se define uma boa gestão na educação?

RICARDO HENRIQUES – O primeiro elemento é uma gestão orientada para o estudante, comprometida com a permanência dos estudantes na escola e com uma aprendizagem significativa para todos. Para uma gestão pública de qualidade, é chave que se tenha altas expectativas para todos os estudantes. Outro pilar é um alinhamento entre a secretaria de Educação, as diretorias regionais de ensino e o corpo diretivo das escolas. Quando as escolas têm bons desempenhos de forma isolada, perde-se o sentido do público.

Outro ponto da boa gestão é que se aprenda com a prática. O que se faz com o bullying? Quais as melhores práticas didáticas? Quais processos existem de personalização do ensino? A escola precisa ser “aprendente”, não ter dogmas a priori sobre modos de fazer, e sim ter uma disposição grande para a aprender.

Para que todos os alunos avancem, é preciso lidar com os quatro eixos da gestão: administrativo-financeiro, pedagógica, gestão de pessoas e do ambiente/comunidade.

P – Quais são as maiores dificuldades de gestão nas redes públicas de ensino do Brasil?

RH – O primeiro grande desafio é que tenhamos uma cultura institucional que mobilize profissionais da educação, famílias e os estudantes para o compromisso com esse desenvolvimento de todos. Existe muita vulnerabilidade nesse sentido.

Outro problema é que a formação da grande maioria dos professores tem pouco tempo para práticas pedagógicas e metodologias de ensino. Como fazer avaliações de forma contemporânea? Como manter o engajamento dos alunos? Para tudo isso tem técnica. As faculdades também se dedicam pouco a formar para a gestão escolar. Um profissional da educação tem que ter boa formação de práticas de ensino e de gestão.

Uma decisão de cunho administrativo, como acompanhar a frequência dos estudantes, é vital para o pedagógico. A gestão de dados orienta decisões pedagógicas. Quando os dados mostram lacunas de aprendizagem, é preciso um enfrentamento pedagógico. Pensemos em áreas de vulnerabilidade, como as escolas do complexo da Maré, que têm de ser fechadas por problemas de violência, troca de tiros. É preciso um diretor que lide com a situação na hora do conflito, e, depois, com os traumas, as perdas etc. Isso está no campo administrativo, mas é totalmente vinculado ao pedagógico. São campos completamente imbricados.

P – Como o sr. vê os projetos do Paraná e de SP, em que os governos terceirizam uma parte da administração das escolas –segundo eles, a parte não pedagógica?

RH – Do que eu li sobre os projetos, eles são bem distintos. Mas o ponto-chave é que a maior missão da educação é uma missão pública de uma rede de ensino, que garanta que todos os estudantes permaneçam nas escolas e que aprendam.

As expressões “administrativo” e “administrativo-financeiro” abarcam muitos elementos. Um coisa, como é caso do projeto de SP, é a construção e a administração predial das escolas [pelas empresas]. Com uma boa análise de custo-benefício, isso talvez possa fazer sentido. Mas não se pode deixar com empresas elementos vinculados à administração como a assiduidade dos alunos, o clima no ambiente escolar, a visão sobre a escola. Um olhar contemporâneo, baseado em exemplos de transformação na educação no Brasil e no mundo, encara essas dimensões da administração de forma imbricada com o pedagógico. Experiências exitosas indicam que a gestão pública que articula o pedagógico com o administrativo produz círculos virtuosos. Isso nos diz que a gestão educacional deve ser de responsabilidade pública.

P – No senso comum, parece lógica a ideia de que um diretor de escola não deva se preocupar com a compra de sabonete, a manutenção do telhado etc., a fim de ter tempo para cuidar do pedagógico. Há como pensar em uma política pública que tire do diretor essas responsabilidades, sem recorrer a empresas privadas?

RH – É bom ressaltar que uma boa administração de escola não se ancora em uma supermulher ou um super-homem, no extraordinário, mas é do campo do ordinário, com um corpo de pessoas envolvidas para buscar as melhores soluções.

Uma boa gestão pública é uma gestão compartilhada, não é movida por uma visão antiga, em torno de uma pessoa só. É uma equipe gestora, que deveria estar responsável pela gestão administrativa, pedagógica e com a comunidade escolar.

Temos muitos exemplos de boas gestões em escolas públicas, inclusive em algumas que enfrentam muitas adversidades, que conseguem fazer uma aproximação, e não o divórcio, entre o administrativo e o pedagógico. Por que precisamos investir em outro rumo?

A linha de separação que se propõe entre a empresa e o governo é tênue. Se as escolhas forem públicas e só a construção e a administração predial forem da empresa privada, a princípio não há grandes problemas. Mas a escolha sobre o tipo de escola tem que ser pública.

E se a alimentação, por exemplo, se estiver a cargo da empresa privada, quem garante o controle nutricional [no projeto de SP, a alimentação fica com a empresa]? Não podemos nos esquecer de que há alunos em insegurança alimentar em casa, e é parte da responsabilidade pública da escola garantir a segurança alimentar. Isso pode ser feito pela empresa privada? Talvez, desde que a empresa esteja contratualmente comprometida com a segurança alimentar. É preciso garantir de forma contundente todo o bem público associado a esse serviço prestado por empresas nas escolas.

Mas a gente tem evidências dúbias no mundo de projetos semelhantes a esses do PR e de SP, que são as escolas charter. Algumas coisas funcionam, outras não. E os contextos são bem diferentes do Brasil, são regiões orientados por condados (divisão regional dos EUA). A comunidade de um condado faz uma escolha de escola que pode ser diferente do condado vizinho. No Brasil, há muitas evidências, como a do estado do Pernambuco, de que gestão pública boa gera resultados em escala na educação.

P – Por falar em segurança escolar alinhada a princípios, como o sr. vê o projeto de Tarcísio de ampliar as escola cívico-militares, em que parte da gestão é militar?

RH – As cívico-militares também não vão nesse sentido do público de que falo. Porque você aparta, gera seletividade, tanto na entrada de alunos quanto na permanência, quando, por exemplo, dentro da regra da escola, se expulsa o “rebelde”. Não há comprometimento com a agenda de equidade, fundamental na educação pública. Com o tempo, ter esse ou aquele tipo de escola gera segregação e desigualdade entre as pessoas e nos territórios, é o contrário da missão da educação pública.

Um processo que produz segregações não é republicano, comprometido com qualidade para todos. As cívico-militares tentam enfrentar a indisciplina, as dificuldades do ambiente escolar. Para enfrentar isso, há o caminho da visão militarizada ou outro, que busca a boa disciplina com um processo participativo, integrador. É muito restrita a visão de um caminho militarizado para gerar o aprendizado e a ordem. Uma ordem virtuosa implica engajamento e não temor entre os estudantes, implica troca entre pares, e não submissão.

Nas cívico-militares, temos adequação às regras, e não coparticipação e capacidade de ser criativo em relação às regras. As experiências que funcionam no Brasil e no mundo são participativas, de troca. São estratégias que geram tensão, claro, mas estabelecem caminhos sobre o contraditório, e não esmagam o contraditório.

RAIO-X | RICARDO HENRIQUES, 64

Economista pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é superintendente-executivo do Instituto Unibanco desde 2012. Foi secretário nacional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (2004-2007) e secretário-executivo do Ministério de Desenvolvimento Social (2003-2004), quando atuou na implantação do programa Bolsa Família. Foi secretário estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (2010) e atuou como pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 1997 a 2002.

LAURA MATTOS / Folhapress

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