SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É improvável que a cenografia da peça “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe”, em cartaz no Sesc Pinheiros, não faça lembrar a “Les Feuilles Mortes”, poema do francês Jacques Prévert, que se tornou uma canção clássica.
As folhas secas que cobrem todo o palco estendem a cor terrosa até a iluminação oblíqua, um contraste com a imagem da “parede de gelo”, pontuada por diversas vezes nas falas das atrizes em cena. A peça destoa da canção ao substituir a memória de um romance por um drama familiar, mas as obras se unem na dor de uma história mal resolvida, no sentimento que não é dito.
Antonia, vivida por Sílvia Buarque, se senta tête-à-tête com sua mãe, Elisa, papel de Guida Vianna, mantendo certa distância. Na tentativa de salvar a relação, as duas embarcam para uma viagem à Índia. Há três décadas, Elisa não aceita que a filha tenha se casado com outra mulher. Na primeira parte da história, escrita por Daniela Pereira de Carvalho, o preconceito de Elisa se imiscui à tentativa de compreender o desejo de Antonia para, enfim, superar as interdições do amor entre mãe e filha.
Uma nova surpresa, no entanto, abala a viagem. Antonia revela à sua mãe, que antes de se casar, engravidou de um homem, teve a criança e a entregou ao orfanato. Após uma passagem de tempo, a peça, dirigida por Leonardo Neto, tem uma segunda parte, em que as atrizes mudam de personagens. Buarque interpreta Helena, a menina que fora abandonada no passado e marca um jantar para conhecer a sua mãe, agora um papel de Vianna. Na peça, o aborto é tratado com naturalidade pelas duas mulheres.
Incrédula com a revelação, Elisa chega a perguntar à filha por que decidiu ter a criança. Na segunda parte, Helena, ela própria, conta à mãe que fez um aborto quando jovem e fica sem entender os motivos que levaram Antonia a dar à luz, mesmo sem um desejo expresso de ter uma filha. “O teatro não quer dar recado nenhum, porque aqui é o lugar da dúvida e não da mensagem”, diz Vianna, em alusão ao PL 1904, que equipara o aborto ao crime de homicídio. “Mas é sim um retrocesso do Congresso.”
O texto de “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” é estruturado, sobretudo, em sentimentos subversivos. Em primeiro lugar, a convenção social prevê o amor e o companheirismo entre mãe e filha, o que não ocorre em nenhuma das partes da obra e estabelece uma tensão entre as personagens. Nesse sentido, o abandono de uma filha por sua mãe representa, de igual modo, uma atitude contraditória e mesmo inesperada.
A peça chega agora à capital paulista, após uma temporada bem-sucedida no Teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro, para onde volta no segundo semestre. O espaço é mantido pelas atrizes Andrea Beltrão e Marieta Severo. Buarque é filha da intérprete da dona Nenê, de “A Grande Família”, e do cantor e compositor Chico Buarque.
“Você não tem a profissão dos seus pais por coincidência. Hoje em dia a gente troca muitas figurinhas e não nos comparamos”, afirma Sílvia. “O peso maior foi ser filha do meu pai, porque, nos anos 1970, Marieta Severo era apenas a mulher do Chico Buarque.”
Com a peça, Sílvia também estreia como produtora teatral. “Acho que todo ator deveria produzir para saber como, muitas vezes, os artistas são chatos”, diz ela, em tom de brincadeira.
Em breve, a linhagem de artistas deve aumentar. A filha de Sílvia, Irene, está estudando artes cênicas na faculdade. “Se eu for para escolher, eu prefiro que ela não seja atriz, conheço as roubadas. Ser atriz virou uma profissão de Instagram”, afirma a atriz.
Guida Vianna, que foi por três décadas professora de teatro do Tablado e trabalhou em novelas como “Fina Estampa” e “Duas Caras”, de Aguinaldo Silva, confirma a impressão de sua parceira, dizendo que os jovens dão demasiada importância às redes.
“A profissão está muito competitiva e é difícil separar o joio do trigo, porque as novelas estão escalando por número de seguidores no Instagram, vão os influencers e não os atores”, afirma Vianna. “Está tudo confusérrimo.”
A MENINA ESCORRENDO DOS OLHOS DA MÃE
Quando Qui. a sáb., às 20h, de 21/6 a 21/7
Onde Sesc Pinheiros – r. Pais Leme, 195, São Paulo
Preço De R$ 12 a R$ 40
Classificação 12 anos
Elenco Guida Vianna e Silvia Buarque
Direção Leonardo Netto
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress