SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um box com dois livros infantojuvenis sobre cientistas mulheres foi recolhido das salas de leitura das escolas municipais de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, por decisão da gestão Anderson Farias Ferreira (PSD). A ação da prefeitura ocorreu após queixa de um vereador que criticou a presença em um dos livros da antropóloga Débora Diniz, por seu histórico de pesquisa sobre aborto. As obras em si, porém, em nenhum momento mencionam aborto, mas, sim, “direitos reprodutivos”.
A reclamação do vereador Thomaz Henrique (PL) era direcionada a um dos livros “Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas” (editora Mostarda), o que se concentra em linguagens e ciências humanas –o outro trata de matemática e ciências da natureza. Em 13 de junho, logo depois da queixa, ele disse em uma rede social que a prefeitura havia recolhido as obras.
Os livros, escritos por Flávia Martins de Carvalho, juíza no Tribunal de Justiça de São Paulo e juíza-ouvidora do STF (Supremo Tribunal Federal), são compostos de ilustrações e versos que contam, resumidamente, a história de mulheres de destaque em diversos campos das ciências.
Entre essas mulheres estão Lélia Gonzalez, Ruth Bader Ginsburg, Jaqueline Góes de Jesus, Stephanie Louise Kwolek, Nise da Silveira, Débora Diniz e Marielle Franco -ativista e vereadora no Rio de Janeiro que foi assassinada em 2018.
Henrique (PL) citou Diniz e Marielle no plenário da Câmara Municipal de São José dos Campos, no último dia 11, quando, além de mencionar aborto, falou em doutrinação ideológica -o comentário se deu um dia antes de a Câmara dos Deputados aprovar o requerimento de urgência do PL Antiaborto por Estupro.
Ainda no Legislativo municipal, o vereador afirmou que, há alguns meses, fez uma denúncia de “doutrinação ideológica dentro de uma escola municipal” pela unidade educacional ter colocado uma imagem de “Marielle Franco como uma referência de mulher, o que eu discordo”. A imagem era derivada de “Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas”.
Após isso, ele direcionou sua reclamação para a inclusão de Diniz na obra. “Este livro está nas bibliotecas das escolas públicas municipais para crianças, para meninas da 5ª série. Com uma linguagem simples, infantil, até pueril, mas estimulando elas a ter como referência uma mulher que é a principal apologista da legalização e da descriminalização do aborto no Brasil”, disse o político.
“Porque quem permitiu isso precisa ser punido. Porque eu não acredito que o prefeito concorde com isso. Esse livro tem que ser recolhido das escolas públicas municipais. Ou nós vamos colocar crianças, meninas de 5ª série tendo como referência uma senhora que defende há décadas o aborto aqui no Brasil? Lendo esse conteúdo e depois entrando no Instagram para ver o que ela defende.”
O tema aborto, porém, em nenhum momento é abordado nem na parte referente a Diniz nem em nenhuma outra dos dois livros. Uma das obras menciona o “direito de mulheres quererem ser mãe ou não”, “direitos reprodutivos” e “Quando as mulheres unidas/ Dizem que vão decidir/ O que fazer com seus corpos/ Sem o Estado intervir” (veja o trecho completo abaixo).
Direitos reprodutivos e aborto não são sinônimos. O primeiro teve uma definição construída na ICPD (International Conference on Population and Development), em 1994.
“É um equivoco achar que apenas aborto é um direito reprodutivo”, disse Henderson Fusrt de Oliveira, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP.
Os direitos reprodutivos “baseiam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos de decidir livre e responsavelmente sobre o número, intervalo e timing de seus filhos e de ter a informação e os meios necessários para isso, e o direito de atingir o mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva”.
O especialista citou, como parte dos direitos reprodutivos, acesso à saúde e a recursos provisórios e definitivos para proteção e prevenção da parentalidade, pré-natal, parto sem violência obstétrica.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Educação de São José dos Campos afirmou, em nota, que os livros nunca estiveram em bibliotecas municipais ou salas de aulas, mas só em salas de leitura da cidade.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Educação de São José dos Campos confirmou, em nota, ter recolhido os livros, entretanto disso que nunca estiveram em bibliotecas municipais ou salas de aulas, mas só em salas de leitura da cidade.
A nota, porém, não respondia às questões enviadas pela reportagem. Questionada novamente, por email e telefone, a pasta se recusou a responder às seguintes perguntas:
1 – O que motivou a retirada das salas de leitura? Alguém acionou a prefeitura e a secretaria? Quem?
2 – Quem, especificamente, da equipe técnica da Secretaria de Educação e Cidadania é parte do processo de reavaliação?
3 – Quais são as etapas dessa avaliação?
4 – Como são escolhidos os livros que formam o acervo das salas de leitura de SJC?
A reportagem também tentou contato diretamente com a prefeitura, por email, mas não recebeu resposta da administração Anderson Farias Ferreira (PSD).
A editora Mostarda se disse surpresa com o recolhimento dos livros. “Repudiamos qualquer tipo de censura e defendemos que obras que promovem o pensamento crítico e o exercício da cidadania devem permanecer nas escolas, sem quaisquer impedimentos de ordem autoritária”, declarou a editora, em nota.
Henrique afirmou à reportagem nesta sexta (21) concordar que o termo “direitos reprodutivos” não se restringe a aborto, mas disse que há uma exploração “enviesada disso pelos ativistas de esquerda” e que o uso no livro é “completamente incompatível com a idade indicativa do livro”.
No site da editora, consta que o livro é apropriado a partir de três anos. Em sua fala em plenário, porém, o vereador afirmava que o livro estava disponível em salas de leitura para crianças da 5ª série -consequentemente, com idades de 10 a 11 anos.
O vereador defendeu ainda que há menções indiretas a aborto na obra. Quanto a Marielle, ele disse que repudia “a morte da ex-vereadora”, porém discorda de valores e pautas que eram defendidas por ela.
VEJA OS VERSOS DO LIVRO RECOLHIDO PELA PREFEITURA QUE LEVARAM À MANIFESTAÇÃO DO VEREADOR
“Débora e as Ciências Sociais
Nascida em Alagoas,
Foi de lá que ela veio.
Menina que muito esperta
Não ficava pra escanteio.
Miúda e bem branquinha,
Desde bem pequenininha,
Já tinha maturidade
Lutando pela igualdade.
Foi assim que estudou
As Ciências Sociais.
Ela tudo observava:
Coisas, gente, animais.
Fez filme, documentário,
Escreveu livro também.
E por onde ela passou
Sempre ensinou muito bem!
Hoje, longe do Brasil,
Defende com a razão
O direito de mulheres
Quererem ser mãe ou não
Isso tem um nome próprio:
“Direitos reprodutivos”.
Em muitos lugares do mundo,
Já não tapam os ouvidos
Quando as mulheres unidas
Dizem que vão decidir
O que fazer com seus corpos
Sem o Estado intervir.
Incomodou gente chata
Que não queria pensar,
Mas Débora veio ao mundo
Para nos iluminar!
E hoje ela nos guia
No Instagram aos domingos,
Onde segue ensinando,
Com seu singelo sorriso,
Sobre o mundo da pesquisa,
Coisas que são sem igual.
Porque Débora Diniz
É muito sensacional!”
PHILLIPPE WATANABE / Folhapress