BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A cautela adotada pelo governo na chamada pauta de costumes no Congresso para dar prioridade a propostas econômicas levou o PT e o próprio Executivo a ficarem a reboque de outros partidos e de artistas em dois temas que dominaram o debate público recentemente: a chamada “PEC das Praias” e o PL Antiaborto por Estupro.
A discussão, que não se resumiu às redes sociais, teve repercussão positiva para a esquerda, uma situação de exceção em um histórico de domínio da direita nos últimos anos.
Os acontecimentos forçaram, inclusive, o presidente Lula (PT) a mudar de postura.
Nos dois episódios, a mobilização do campo à esquerda forçou um recuo do Congresso.
No caso da “PEC das Praias”, um dos principais movimentos de oposição foi encampado pela atriz Luana Piovani, que entrou em discussão com o jogador Neymar nas redes sociais e jogou holofotes sobre o tema.
“Como é que a gente tem que batalhar por não privatizar praias? E vem aí esse ignóbil desse ex-ídolo, que realmente já fez muita coisa… Claro que fez, se não ele era quem ele é hoje. Mas como é que uma pessoa pode acabar tanto com tudo que construiu dessa maneira?”, disse a atriz sobre a PEC, que havia sido aprovada em 2022 pela Câmara sem grande alarde, e sobre Neymar, a quem fez várias outras críticas.
O atleta rebateu Luana Piovani e, por meio de nota, a empresa Neymar Sports, que representa o jogador, disse que a proposta não impactaria seus empreendimentos, como havia dado a entender a atriz.
O principal ponto da proposta é a mudança nas regras referentes aos terrenos de marinha, permitindo a passagem de algumas dessas propriedades da União para estados, municípios e para entes privados.
O relator do texto na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), deu parecer favorável à proposta e criou um site para defender a medida. Ele afirma que ela dará mais segurança jurídica aos atuais ocupantes dessas áreas, vai aumentar a arrecadação e atender necessidades de municípios com grandes áreas litorâneas.
Por outro lado, ambientalistas apontam riscos para a diversidade ecológica com a transferência dessas áreas. O governo federal afirma ainda que a demarcação e administração desses terrenos são fundamentais para garantir a gestão adequada dos bens da União.
Após ficar parada durante meses no Senado, a PEC tinha voltado a ser discutida na CCJ, com indicativo de votação, mas, após a reação, voltou à gaveta e não há perspectiva de análise.
No caso do PL Antiaborto por Estupro, o PSOL liderou a oposição ao projeto enquanto o PT trabalhou nos bastidores mais para evitar desgaste de imagem a seus parlamentares do que barrar a medida.
A proposta prevê a alteração do Código Penal para aumentar a pena imposta àquelas que fizerem abortos quando há viabilidade fetal, presumida após 22 semanas de gestação –a ideia é equiparar a punição à de homicídio simples.
Com isso, a pena de uma mulher estuprada que aborta ficaria maior do que a do estuprador.
O partido de Lula atuou para que a votação do requerimento que deu caráter de urgência ao projeto de lei ocorresse de forma simbólica, sem registro nominal de como cada parlamentar se posicionou –com isso, evitou o que avaliava àquela altura ser uma arma a ser usada pela direita contra o partido nas eleições de outubro.
As críticas à proposta, no entanto, com foco nas crianças estupradas, unificaram a esquerda nas redes sociais, provocaram manifestações nas ruas e forçaram o governo a recalcular a rota e mudar de posição.
Na sexta-feira (14), enquanto cumpria agenda na Europa, Lula evitou falar sobre o assunto e disse apenas que iria “tomar pé” da situação. A postura se alinhava à que a bancada governista havia adotado na Câmara dias antes.
Menos de 24 horas depois, porém, ele deu uma guinada no discurso e afirmou que é uma “insanidade alguém querer punir uma mulher com pena maior que o criminoso que fez o estupro”.
O Legislativo também mudou de postura. O autor do projeto, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que mantinha a afirmação de que o mérito da proposta seria votado rapidamente, teve que se contentar com a criação de uma comissão para analisar o texto, sem prazo para votação.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), reconheceu a aliados que sofreu muito desgaste ao acelerar a tramitação do PL e indicou um freio nos projetos considerados polêmicos na Casa.
O cientista político Christian Lynch, professor do Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), afirma que não é possível saber se o PT realmente deixou em segundo plano a discussão do PL sobre aborto ou se “não teve competência para organizar uma resistência”.
“O governo entrou tardiamente no debate. Os exércitos chegaram depois que a batalha estava, de alguma maneira, ganha”, diz.
Lynch afirma que o governo deveria fazer uma pesquisa para entender o comportamento do brasileiro no geral a fim de definir melhor qual posição adotar.
“Eles estavam inseguros a respeito da extensão do domínio conservador sobre a opinião da sociedade civil. Eles mesmo não sabem. Acho que o governo tinha que fazer uma espécie de enquete geral para saber o que pensa o brasileiro para poder organizar uma política qualquer, saber o que fazer”, diz.
O cientista político afirma que a ausência de uma posição definida sobre temas sensíveis facilita as críticas ao governo.
“Estão agindo como se estivessem destinados a apanhar em toda e qualquer pauta que chamam de costumes. Mas o problema é: quando deixa de ser pauta de costumes e passa a ser de direitos humanos? O PL do aborto mostrou que a sociedade civil se mexeu porque virou pauta de direitos humanos, não é uma questão de costumes”, afirma.
MATHEUS TEIXEIRA / Folhapress