Mulher não é dona do próprio corpo no Brasil, diz escritora Tatiana Salem Levy

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Seja sob os olhos de Deus ou de um padrasto, as meninas de Claudia Piñeiro e de Tatiana Salem Levy são retratos da violência. Esse fio uniu as escritoras argentina e brasileira na tarde deste domingo na Feira do Livro, em São Paulo, numa das duas mesas do dia que tiveram a mulher na literatura como ponto de partida.

Piñeiro vem ao Brasil na esteira da tradução de “Catedrais”, romance que narra em muitas vozes o assassinato da jovem Ana.

Salem Levy lança “Melhor Não Contar”, romance de inspiração autobiográfica em que a protagonista sofre assédio de um padrasto. “Vista Chinesa”, de 2021, sobre um estupro, é também baseado na história real de uma amiga da autora.

Mas nem Piñeiro nem Levy tinham intenção de escrever livros sobre a violência contra a mulher quando escreveram as suas obras. A argentina diz, ainda, que não escreveu para militar. “As coisas que aconteceram com as personagens são as coisas que acontecem com a gente”, diz.

Salem Levy, que fez um aborto em Portugal, onde o procedimento é legalizado, diz que “o aborto é sempre difícil”. “Não ter um julgamento moral torna menos solitário”, afirma. Ela argumenta que a possibilidade de falar sobre isso traz conforto. O Brasil, por outro lado, é um lugar onde a mulher não tem autonomia sobre o próprio corpo, segundo a autora.

Ela diz que percebeu que seus romances trazem a violência quando fez o exercício de olhar para trás. Piñeiro parte de uma cena, Ana, a protagonista de “Catedrais”, entrando em uma igreja, ensopada. Mas a violência sofrida, ela diz, veio depois.

Elas, aliás, nem sequer pensaram em fazer literatura feminina, coisa na qual elas não acreditam. Salem Levy refuta a ideia de que mulheres façam livros intimistas e subjetivos. Piñeiro fala que novas gerações leem autoras sem a ideia de que aquilo é direcionado só às mulheres.

Mas o impacto do feito não escapa à percepção delas. “Junto com a escrita tem um gesto político, temos que tomar a palavra”, diz Salem Levy.

O ofício com a linguagem foi pauta quando se debateu o direito ao aborto. Piñeiro diz que ativistas antiaborto fazem operações com as palavras ao se dizerem pró-vida, como se os favoráveis à interrupção fossem contrários a ela. Segundo a autora, desde a descriminalização do procedimento na Argentina a quantidade de meninas que deram à luz diminuiu.

Mas entender a argentina não foi tarefa simples, apesar do amistoso espanhol quase irmão do português. Imperou nos alto-falantes a tradução simultânea da autora, que repetiu um problema da primeira edição da Feira do Livro —falas da argentina perderam temperatura, ficaram truncadas e diminuíram o ritmo do início da mesa.

No começo da conversa, o volume dos microfones de outra tenda também atrapalhou a conversa e criou alguma comoção no palco principal.

Dentro do auditório, o tradutor e escritor Caetano Galindo teve suas obras mais recentes, o ensaio “Latim em Pó” e o ficcional “Lia”, pincelados entre indagações sobre seu trabalho traduzindo James Joyce e escrevendo peças de teatro. A primeira meia hora da conversa foi gravada para o programa literário da TV Brasil.

Segundo Galindo, “Lia” foi uma tentativa de inserir “a realidade caótica e desprovida de sentido” para escapar da lógica previsível do romance. “O acaso é o mais generoso dos deuses”, diz.

Mas foi o debate sobre o uso correto do português que inflamou as emoções no auditório. Como bom professor, Galindo defende a norma culta e o lugar que ela ocupa na sociedade. O que ele não admite é que esse lugar seja extrapolado.

Ele diz que, no Brasil, as gramáticas são escritas usando exemplos obscuros de um uso correto do português, sendo que grandes autores e instituições o desrespeitam a todo momento. Para ele, 200 milhões de brasileiros são mais poderosos do que o autor de uma gramática.

BÁRBARA BLUM / Folhapress

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