Linguagem travesti vai enriquecer a palavra, diz escritora Camila Sosa Villada

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “O que aconteceria se as travestis olhassem leitores diretamente nos olhos?”, provocou Camila Sosa Villada a espectadores que não desgrudavam seus olhos dela na Feira do Livro, em São Paulo, neste domingo.

É uma pergunta que vem da gênese do livro “Tese sobre uma Domesticação”, sobre uma atriz trans que é rica e poderosa, sem pedir piedade alguma ao mundo.

“Minha intenção era responder aos jornalistas e leitores que tinham feito críticas a ‘O Parque das Irmãs Magníficas’ e se aproximavam de mim com comiseração. E eu sabia que estavam mentindo. Precisava que essa protagonista olhasse os leitores de cima.”

A argentina está no Brasil para lançar três livros: além desse romance pela Companhia das Letras, o ensaio sobre escrita “A Viagem Inútil” pela Fósforo e os poemas de “A Namorada de Sandro” pela Tusquets. A variedade dá uma noção da recepção de alta temperatura da autora por aqui, na mesa mais lotada do primeiro fim de semana de evento.

O encontro foi uma defesa fervorosa da linguagem travesti, que para ela não deve se “submeter à linguagem cis heterossexual nem à homossexual”. “A linguagem travesti vai enriquecer a palavra”, prometeu.

Ela usa o tempo futuro porque a autoria de pessoas trans ainda é rara no mercado editorial. “Não sabemos o alcance nem a influência que a sintaxe travesti terá no mundo literário, porque somos poucas ainda.”

“Não é só que eu não estava destinada a escrever, eu não estava destinada a sobreviver. As travestis vamos morrendo pelo caminho, não chegamos a aprender a ler e escrever. Então eu sabia que tinha esse superpoder da palavra, que ganhei do meu pai e minha mãe na infância.”

A instituição familiar é uma das curiosidades mais recentes e pronunciadas da literatura de Sosa Villada. “Quando falavam em ‘Parque’ na tal família que era escolhida pelas travestis, eu dizia que isso é amizade, não família. Em ‘Tese’, a célula familiar é praticamente uma máfia, porque é isso que acho que famílias são.”

Ouvindo uma pergunta da mediadora, a jornalista Adriana Ferreira Silva, sobre suas influências literárias, ela reverenciou uma lista de autores como Carson McCullers, Truman Capote e Marguerite Duras (“que me ensinou tudo, uma professora dura, como o mestre de Uma Thurman em ‘Kill Bill'”).

Mas apontou, respeitosamente, que as perguntas recorrentes sobre suas influências sempre lhe soam embutidas de uma ideia de autópsia: “mas como foi que essa criatura começou a escrever?”. “Acho que não perguntariam ao senhor Vargas Llosa quais eram suas influências. As minhas também são minhas próprias memórias, minhas conversas com minhas tias.”

A mesa padeceu de uma questão que também afetou a argentina Claudia Piñeiro um pouco antes. Nos alto-falantes imperou a tradução simultânea, não a voz da autora, algo que repetiu um descompasso geral já presente nas primeiras edições da Feira. Por uma falha técnica que impediu o som de chegar à boa tradutora, o microfone de Sosa Villada foi liberado por poucos minutos, para um público em êxtase.

A feira continua, com uma programação de mesas abertas e gratuitas, até o próximo domingo, dia 7.

WALTER PORTO / Folhapress

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