Morto há 50 anos, Perón ainda é central na política argentina

BUENOS AIRES, ARGENTIONA (FOLHAPRESS) – Contam os relatos daqueles poucos que passaram os últimos momentos de Perón a seu lado que o silêncio era total naquela fria manhã de 1º de julho de 1974, num dos quartos da Quinta de Olivos, a residência presidencial. Desde cedo, os médicos que atendiam ao general tentavam estabilizar seu coração, que já tinha tido algumas paradas. Por volta do meio-dia, ele bateu pela última vez.

Uma hora depois, María Estela Martínez de Perón (conhecida como Isabelita), sua segunda mulher e vice-presidente, tomou o poder, seguindo o procedimento constitucional. Muitos partidários da esquerda e os da direita temiam que isso acontecesse.

As ruas das principais cidades do país foram tomadas de gente, muitos chorando. Debaixo de uma tromba d’água e no inverno, mais de 500 mil argentinos caminharam atrás do féretro, apenas em Buenos Aires.

Os primeiros mandatários a chegar foram da linha dura regional: os ditadores Juan María Bordaberry, do Uruguai, Hugo Banzer, da Bolívia, e Alfredo Stroessner, do Paraguai. Mas as saudações e homenagens vieram de todos os lugares, dos EUA, de Cuba, da então União Soviética, da Europa e de outros países latino-americanos.

Definir o peronismo, que há décadas permeia a história da Argentina, não é tarefa fácil. Geralmente provoca risos nas rodas entre os locais quando um estrangeiro aparece com essa pergunta. Talvez quem tenha dado a melhor resposta tenha sido o próprio Perón. Entrevistado por um jornalista espanhol durante seu exílio em Madri, explicou: “Veja, na Argentina há uns 30% de radicais, que vocês entendem aqui como liberais, uns 30% de conservadores e outro tanto de socialistas”. O jornalista, surpreendido, perguntou, então: “Mas e os peronistas?”. Perón riu e disse: “Peronistas somos todos”.

De um ponto de vista mais objetivo, o peronismo é um movimento político nascido na década de 1940, quando o general Juan Domingo Perón (1895-1974) governou o país pela primeira vez, em dois mandatos seguidos (1946-1955). Teve projeção ao defender os trabalhadores e seus direitos, mesmo sendo ele, Perón, um dos homens que participaram de um golpe de Estado, em 1943, para derrubar um governo democraticamente eleito e impor também uma ditadura.

Fazer ouvir a voz dos mais pobres e acolher suas demandas foram as principais chaves para abrir o coração dos argentinos. Seus primeiros seguidores eram funcionários de fábricas, transportadores de trem, metrô e ônibus, comerciantes e construtores. A massa de peronistas foi crescendo, apoiada na forte presença de sua segunda mulher, Eva Perón (1919-1952), que vinha do mundo das artes e se tornaria uma líder estridente, que chegava a ser admoestada pelos outros membros da cúpula do comando. Evita era a rainha dos jovens, crianças e mulheres.

Os dois períodos dessa primeira gestão Perón marcaram positivamente a memória de muitos argentinos. Foram regulamentados a jornada de trabalho, as férias remuneradas, os planos de saúde e as aposentadorias. Foi também, com Perón, que pela primeira vez na história da Argentina as mulheres passaram a poder votar.

Claro que tantas mudanças deixariam irritados os acostumados a ter poder e dinheiro distribuídos no tradicional circuito. É por isso que o antiperonismo nasce praticamente junto com o peronismo. Na Argentina, são conhecidos como “gorilas”.

A primeira passagem de Perón pelo poder teve um fim turbulento, com outro golpe militar, em 1955. A situação econômica tinha degringolado, e o presidente perdia aliados no Congresso e no gabinete. Ele teve, ainda, de conviver com a doença de Evita, que morreria de um câncer fulminante em 1952, o que impactou muito seu estilo de governar.

Depois do golpe, o general se exilou na Espanha, onde ficaria por 18 anos. Deixou uma Argentina em crise econômica, com a deterioração dos benefícios que ele tinha trazido à vida das pessoas. O clima entre o Exército repressor e as organizações guerrilheiras urbanas, algumas delas vinculadas ao peronismo, começava a assustar a sociedade.

Em 1973, um Perón doente volta a seu país, que tinha eleito há pouco um leal servidor seu, Héctor Cámpora. A estratégia era que Cámpora desistisse do cargo e convocasse novas eleições para reconduzir o líder populista. Foi o que ocorreu, mas sob circunstâncias difíceis. Perón abandonou os guerrilheiros montoneros e preferiu ser apoiado e protegido pelos sindicalistas, passando a perseguir o primeiro grupo.

No famoso discurso de 1º de maio de 1974, na praça de Maio, Perón, irritado, disse que os jovens guerrilheiros não deveriam usar mais seu nome como bandeira. “Eu estava lá na praça, nós havíamos aguentado tantos anos de clandestinidade quando ele estava no exílio, esperamos tanto para lutar por ele, e ele nos abandonou. A tristeza foi muito grande”, afirma Daniel Filmus. Apesar da decepção, ele se manteve fiel ao peronismo. Foi ministro de Educação, Ciência, Tecnologia, durante a presidência do também peronista Néstor Kirchner (1950-2010), além de senador.

A morte de Perón, logo depois, só agravou a situação política. Escolhida para ser sua candidata a vice-presidente no retorno do exílio, Isabelita assumiu e demonstrou despreparo para lidar com o caos social. Adveio o golpe militar de 1976 e começaram os piores anos da história argentina, até 1983. Nesse período, mais de 22 mil pessoas foram mortas, e 500 bebês roubados pelos militares foram entregues para adoção.

Para o analista político argentino Federico Finchelstein, professor de história da New School, em Nova York, a sobrevivência do peronismo ao longo de décadas tem vários componentes. “É um fenômeno populista, demagógico, ultranacionalista, que fala e dá um sentimento de pertencimento a muitos que estão perdidos. Isso atravessa gerações com facilidade.”

Do peronismo cresceram vários ramos, e presidentes com perfis bastante distintos se reconheciam como herdeiros do movimento. Do liberal Carlos Menem (1989-1999) à esquerda kichnerista de Néstor (2003-2007) e Cristina (2007-2015), passando por mais moderados, como Alberto Fernández (2019-2023), todos se enquadram como peronistas.

Finchelstein afirma que mesmo Javier Milei, que busca se apresentar como contraponto ao peronismo e impôs uma dura derrota ao movimento, adotou alguns elementos populistas. A identidade com a música, a jaqueta preta e os atos de aparente rebeldia seriam artifícios usados na construção de um culto à personalidade no estilo peronista. Não por acaso, o ídolo de Milei dentro do peronismo era Menem, seu líder mais rebelde e extravagante.

Na noite do último sábado (29), jovens na faixa de 25 a 30 anos obedeceram a uma convocação para entrar no bar Perón Perón, em Palermo, que emula a entrada da famosa central sindical CGT, onde o corpo de Evita foi velado. Todo o local estava decorado com memorabilia peronista. As TVs mostravam discursos dele e de Eva, havia imagens dos artistas da época, lenços das Mães da Praça de Maio. O vinho servido no local era da marca Justicialista, nome do partido criado por Perón devido ao foco na justiça social.

À meia-noite, puxado pelo dono do restaurante, chegou o grande momento. Todos cantaram juntos a letra de: “A Marcha Peronista”: Los muchachos peronistas/Todos unidos triunfaremos/Y como siempre daremos/Un grito de corazón: “¡Viva Perón, viva Perón!”

SYLVIA COLOMBO / Folhapress

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