Joe Sacco expõe o drama da colonização indígena em HQ contundente

FOLHAPRESS – O colonizador chega a um povo ancestral, oferece presentes aos indígenas, remédios mais eficientes para suas doenças, promete prosperidade, educação e uma vida melhor. Os indígenas, maravilhados, abrem a ele as portas de suas casas, mostram que bonita é sua natureza, suas músicas e tradições.

Não demora muito, porém, e começa a derrubada de árvores, a exploração dos recursos, a instalação de indústrias, o preconceito com a cor da pele e a rejeição aos habitantes da terra.

América Latina? Brasil?

Nada disso, estamos em uma floresta gélida no norte do Canadá. E quem conta a terrível história de ocupação colonialista que tentou devastar uma cultura é o autor de reportagens e novelas gráficas Joe Sacco. Maltês e americano, o artista é conhecido por retratar zonas de conflito como a Faixa de Gaza ou a Bósnia.

“Pagar a Terra”, lançado agora pela Quadrinhos na Cia, é um ensaio jornalístico sobre as populações originárias do vale do rio Mackenzie, baseado nos relatos de seus descendentes. Como é comum em sua obra, Sacco mostra como foi descobrindo a região, sempre na companhia de guias locais —cujo olhar e opinião também estão presentes.

Os indígenas da população dene foram alvo de tentativas de dizimar sua cultura por parte dos brancos durante os séculos 19 e 20. As crianças eram retiradas do seu entorno familiar e levadas para escolas que mais se pareciam com prisões. Dali, não podiam sair enquanto não aprendessem inglês e francês, tinham de cortar o cabelo, se vestir e se comportar como os brancos.

Em geral, esses colégios eram localizados longe das cidades ou tribos e em territórios inóspitos, de onde era muito difícil tentar fugir. Não era incomum que fossem torturados por desobediência e violentados sexualmente.

Uma das cenas mais impactantes de “Pagar a Terra” é o momento em que famílias levam seus filhos para que subam em aviões e sejam transportados a essas instituições. As mães choram a partida de uma numerosa prole, os irmãos são levados juntos e sem entender o que está acontecendo. Muitos morrem no processo de educação. Os que sobrevivem não raro são seduzidos pelo álcool ou pelas drogas.

Sacco, porém, foge das armadilhas do discurso maniqueísta. Embora os indígenas sejam claramente mostrados como vítimas de uma devastação, a coleção de depoimentos reúne distintas vozes sobre o que ocorreu e segue ocorrendo.

Há pessoas que se posicionam claramente numa posição de rebeldia, outras de tristeza, mas também as que creem que o processo trouxe melhorias à economia local, novidades tecnológicas sem as quais não pensam que poderiam sobreviver.

Um dos aspectos mais interessantes do livro é contemplar essa realidade com um olhar respeitoso. Não abundam as falas, expressando a dificuldade de compreensão entre as partes e dando à narrativa uma fluidez muitas vezes contemplativa, muitas vezes violenta. A crueldade rasga os cenários idílicos, enquanto o traço de Sacco ressalta os olhares de terror, ódio e desespero.

Estamos diante de um documentário dolorido que se desenrosca de modo lento e irreversível. Até os dias de hoje, essa população mostra que parece não existir uma reparação possível ao dano causado. A ideia de uma reconstrução cultural é mostrada de modo realista, travada, obstaculizada pelo drama passado.

Embora não seja uma obra puramente jornalística, faz falta um material informativo mais abundante sobre datas, nomes e localização, especialmente para leitores de lugares distantes do planeta. Não chega a ser um problema, uma vez que a ideia fundamental da obra é mobilizar, emocionar por meio de uma história tão comum a outras partes do mundo e ao mesmo tempo tão particular.

PAGAR A TERRA

Avaliação Muito bom

Preço R$ 119,90 (272 págs.)

Autoria Joe Sacco

Editora Quadrinhos na Cia

Tradução André Czarnobai

SYLVIA COLOMBO / Folhapress

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