SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Prótons e nêutrons formam o núcleo atômico, como quase todo mundo sabe. Mas o que permite que vários prótons, todos com carga positiva e, portanto, repulsivos uns aos outros, se juntem para formar átomos? E por que esses agregados simplesmente não explodem e desmancham numa fração de segundo?
Coube ao brasileiro César Lattes, cujo nascimento completa cem anos na próxima quinta (11), descobrir a “cola” que supera a repulsão eletromagnética e, com isso, permite a existência da matéria como a conhecemos.
O achado ocorreu em 1947, 12 anos após o pesquisador japonês Hideki Yukawa formular uma teoria de como uma partícula, até então jamais observada, poderia ser emitida e absorvida por prótons e nêutrons e com isso criar uma ligação de curto alcance entre eles que seria muito mais poderosa que a repulsão dos prótons, capaz de dar estabilidade aos núcleos atômicos.
Yukawa calculou que a massa dessa hipotética partícula seria maior que a dos elétrons (partículas negativas que circundam o núcleo atômico), mas menor que a dos prótons. Por ter essa massa intermediária, a partícula acabou recebendo o nome de “méson”.
Não tardou para que dois cientistas encontrassem o que parecia ser o tal. Estudando chuveiros de raios cósmicos (partículas geradas nas profundezas do espaço que mergulham atmosfera adentro e podem ser detectadas na Terra), Carl Anderson e Seth Neddermeyer encontraram em 1937 uma candidata, mas que acabou se revelando ser a partícula que hoje chamamos de múon, uma versão mais pesada do elétron.
Para descobri-la, a capacidade de análise das partículas dos raios cósmicos teria de melhorar. É onde César Lattes entra na história.
Durante seu doutoramento na Universidade de Bristol, no Reino Unido, nos anos 1940, Lattes trabalhou sob a direção do britânico Cecil Frank Powell no desenvolvimento de uma técnica que envolvia registrar a ação de raios cósmicos em emulsões fotográficas, expostas em grandes altitudes. Quanto maior, mais rarefeito o ar; a ideia era ter o mínimo de interação possível entre os raios cósmicos e a atmosfera antes que eles chegassem ao detector.
Lattes teve a ideia de modificar a substância que compunha as emulsões, o que aumentou sua sensibilidade e permitiu que as trajetórias de partículas não se apagassem tão rápido com o tempo. Expondo as emulsões aos cerca de 2.800 m de altitude do Pic du Midi, nos Pirineus franceses, o grupo encontrou mais traços do múon, o méson já conhecido desde a década anterior. Além deles, dois dos sinais detectados pareciam vir de outra partícula, que parecia diminuir de velocidade até parar e então disparar uma nova, similar ao múon.
Eram poucos sinais para uma descoberta, o que levou Lattes a viajar até o pico Chacaltaya, na Bolívia, a 5.500 m de altitude, para expor mais emulsões. Nelas, os pesquisadores detectaram cerca de 30 rastros de mésons duplos e puderam constatar que de fato havia duas partículas diferentes, cada uma com sua massa específica. A antiga, conhecida desde 1936, ganhou o nome de méson mi (hoje múon). A nova, méson pi (hoje píon).
Lattes e seus colegas descobriram que a nova partícula, mais pesada, se desintegrava e dava origem à já conhecida, mais leve. Estudos posteriores mostrariam que o achado se encaixava na hipótese original de Yukawa, explicando assim como os núcleos atômicos poderiam ser estáveis.
“Com apenas 23 anos, Lattes ganhou fama internacional”, diz Rogério Rosenfeld, físico e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista). Ele revela que optou por iniciar a graduação em física na Unicamp em 1979, entre outras coisas, pela presença de Lattes em seu corpo docente.
A detecção do méson pi foi reportada em artigo publicado na revista científica britânica Nature em 24 de maio de 1947, tendo Lattes como primeiro autor (o que costuma indicar quem deu a maior contribuição ao trabalho específico) e Cecil Powell como último (posição usualmente dada ao pesquisador sênior, responsável pela equipe).
Em rápida sucessão, haveria dois prêmios Nobel em Física associados à descoberta: o primeiro em 1949, concedido a Yukawa, pela previsão teórica do méson pi, e o segundo a Cecil Powell, líder da equipe de Bristol, pela detecção da partícula, em 1950. Poderia ter sido aquele o primeiro Nobel brasileiro, caso Lattes tivesse sido incluído na escolha da Academia Real de Ciências da Suécia -o que provavelmente seria merecido, já que foram suas contribuições e inovações técnicas que viabilizaram o trabalho. Mas não aconteceu.
ÀS PORTAS DO ZOOLÓGICO SUBNUCLEAR
Para além da descoberta do méson pi, o achado inaugurou uma nova era no estudo de partículas subatômicas -e não somente a partir dos raios cósmicos.
Em 1948, apenas um ano após a descoberta do méson pi, Lattes faria uma segunda grande descoberta, ao aplicar suas técnicas com emulsões fotográficas a aceleradores de partículas. Na ocasião, a Universidade da Califórnia em Berkeley abrigava o maior acelerador de partículas do mundo, com o qual os pesquisadores americanos esperavam promover colisões de partículas conhecidas para produzir artificialmente outras, potencialmente desconhecidas -basicamente o mesmo método que é empregado até hoje em instalações de ponta como o LHC (Grande Colisor de Hádrons), do Cern (centro europeu para física de partículas), na divisa entre a França e a Suíça.
Ocorre que os americanos estavam tendo pouco sucesso nas detecções. Lattes então foi para lá transportando algumas de suas emulsões modificadas. Trabalhando em parceria com o americano Eugene Gardner, ele rapidamente detectou rastros de mésons a partir das colisões do acelerador -foi a primeira detecção de píons produzidos de forma artificial, em laboratório. “Na verdade, inaugurou-se ali a época do estudo de partículas elementares em aceleradores”, diz Rosenfeld.
Hoje, graças à capacidade cada vez mais aguçada para detectar partículas, o zoológico subnuclear já tem uma quantidade significativa de espécimes. Eles foram agrupados em um arcabouço teórico, baseado na mecânica quântica, que abarca todas as formas conhecidas de matéria e energia: o modelo padrão da física de partículas.
Sabemos, por exemplo, que o píon (o velho méson pi de Lattes) é composto de um quark e um antiquark, e os quarks, por sua vez, juntam-se em trios para formar os prótons e nêutrons. A última peça desse grande quebra-cabeças a ser descoberta foi o bóson de Higgs, cuja existência foi confirmada pelo LHC em 2012. Mas os cientistas seguem à procura de novidades, além do modelo padrão, e para isso continuam a projetar e testar novos métodos e aparatos experimentais para decifrar as entranhas da matéria por meio de raios cósmicos e aceleradores de partículas -mostrando que o espírito de Lattes segue vivo e bem representado na física, mesmo cem anos após seu nascimento.
Quando Lattes foi indicado ao Nobel de Física e por quem
1949
Físico Walter Hill (1903-1987)
Físico James H. Bartlett (1904 -2000)
Laureado: Hideki Yukawa 1951
Físico Gleb Vassielievich Wataghin (1899-1986)
Laureados: John Douglas Cockcroft e Ernest Thomas Sinton Walton 1952
Físico Marcel Schein (1902-1960)
Químico Leopold Ruzicka (1887-1976)
Laureados: Felix Bloch e Edward Mills Purcell 1953
Ruzicka
Laureado: Frits Zernike 1954
Ruzicka
Laureados: Max Born e Walther Bothe Fonte: Prêmio Nobel
SALVADOR NOGUEIRA / Folhapress