‘A Flor do Buriti’ encanta os olhos e o espírito sob ponto de vista indígena

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os filmes da saga indígena feitos por João Salaviza e Renée Nader Messora são um tanto diferentes do habitual. Já era possível sentir isso em “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de 2018. Essa percepção se acentua em “A Flor do Buriti”. Eles não agem como cineastas em terra estrangeira, mas como antropólogos dispostos a conhecer o povo que pretendem filmar antes de retratá-los.

Os Krahô, vistos por Salaviza e Nader Messora, são, para começar, de uma beleza que vez por outra nos faz lembrar de Murnau filmando “Tabu”. Os indígenas aparecem aqui em suas múltiplas dimensões: eles sonham, se enfeitam, contam histórias ou narram seus mitos para mantê-los vivos.

Ao longo do filme, conhecemos seus costumes. A capacidade de viver na natureza, com a natureza, por exemplo. Seu humor: em algum momento uma mulher diz a Jotàt, a menina dos sonhos inquietos, que seu pai agora “é caçador de supermercado”.

Há também sinais das coisas que mudaram no contato com os brancos. Como o tipo de roupas que agora usam como frequência. Mas esse contato não os desnaturou, na visão do filme. Eles preservam seus hábitos e adornos, suas festas e danças. Mesmo animais domésticos, como o tamanduá e as araras.

Mas há também os brancos que interferem em sua vida. Os “cupê” (aparentemente uma designação genérica para os brancos, sejam lá quem forem) costumam invadir seu território e roubar as araras. Os indígenas temem. Sua aflição transborda em sonhos inquietos.

Tudo isso faz parte, no filme, de uma cuidadosa construção, que envolve lendas, animais, mitos. A invasão começa pelo roubo das araras, pela tensão com os capangas na porteira da reserva, com discretos triunfos. Mas também com a humilhação de, ao frequentar a escola dos brancos, serem advertidos porque seus trajes não são bons o bastante, seus cabelos compridos têm de ser cortados.

Tudo isso faz parte das durezas cotidianas, que convivem com banhos magníficos no riacho, com incursões pelas matas etc.

Até que surgem os fazendeiros. De repente, a atmosfera se transforma. Fazendeiros não se limitam a atividades artesanais, como o tráfico de animais silvestres: instalam suas fazendas na terra indígena e introduzem o gado, que pelo simples fato de existir destrói tudo que encontra pela frente.

São os fazendeiros os que mais justificam a ideia de que existe uma clara oposição entre vida e ganância, como pretendem os Krahô, para quem a ganância dos “cupê” opõe-se à vida na terra.

É quando mais claramente se mostram as virtudes do filme (e as daquele povo também). Existe medo das terríveis invasões, dos capangas que atiram pelas costas (para essa parcela dos brancos não se aplica nem a ética do faroeste). Mas não há choramingação. Eles se preparam sempre para o próximo round.

Olham para o passado. Para massacres passados, para seus mortos, aqueles de quem herdam o nome -para que não esqueçam. Existe poesia, mas ela vem dos personagens, dos indígenas. Não da filmagem, que é seca e precisa.

Trata-se de mostrar essa saga não com distância, mas com a razão de quem sabe que o cinema está lá para mostrar essas pessoas em suas diversas dimensões, como a das lendas que passam de geração em geração.

Mas, convém não esquecer, eles se veem como guerreiros; sabem que não lhes resta nada, exceto o valor herdado dos antepassados. Têm lá suas armas, mas nem sempre vêm ao caso. Ir a Brasília protestar na Funai, ao lado de outros povos, envolve, sim, perigo (no mais, estamos na Funai dos anos Bolsonaro). Mas eles vão: homens, mulheres, crianças.

Isso também é guerra para os indígenas. Para eles trata-se de proteger a vida na terra. E nós, brancos, com isso? Bem, para começar, cada segundo desse filme nos fala ao mesmo tempo de proteger a vida na Terra (o planeta). Se isso não nos concerne, não sei o que possa concernir.

Talvez a visão de uma Brasília que, quando os indígenas se manifestam, parece mais civilizada. E que formidável panorâmica Salaviza e Renée fazem da paisagem da região dos poderes, acompanhando os dois indígenas caminham enquanto conversam.

Esse é um filme tão agradável aos olhos quanto ao espírito. Talvez isso se deva ao fato de seus diretores saberem os limites do cinema. Seu papel não é berrar, nem reivindicar, nem denunciar. Basta-lhes mostrar para que cada um perceba o quanto é relevante a luta dos indígenas, que é por sua sobrevivência, mas também envolve a nossa. Lutam pela terra e pela Terra, tudo de uma vez.

Não se trata de idealizar os Krahô ou os indígenas em geral, mas “A Flor do Buriti” assume o seu ponto de vista. Tenta entender como eles sentem o estar no mundo e, a partir disso, entender também quem somos nós, o seu outro.

A FLOR DO BURITI

Onde Em cartaz nos cinemas

Classificação 12 anos

Elenco Ilda Patpro Krahô, Francisco Hỳjnõ Krahô, Solane Tehtikwỳj Krahô

Produção Brasil, Portugal, 2023

Direção João Salaviza, Renée Nader Messora

Avaliação Ótimo

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS