SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Universidade Columbia inaugurou em março deste ano em Nova York um dos primeiros serviços de aborto medicamentoso em universidade privada nos Estados Unidos. O procedimento está disponível nas universidades públicas do estado desde maio de 2023. A brasileira Myriam Marques, 60, gerente-assistente de enfermagem no ambulatório estudantil, ajudou a montar e supervisiona a equipe de quatro enfermeiros que fazem os procedimentos.
O primeiro passo da universidade foi mandar uma pesquisa aos funcionários para entender a aceitação sobre o serviço e quem estava disposto a fazer os atendimentos. Foi fácil encontrar enfermeiros, disse Marques. “Nova York é um estado muito progressista. Mais enfermeiras queriam participar do que precisávamos. Enfermeiro homem também.”
O aborto por pílula é gratuito e está disponível no ambulatório estudantil para alunos e parceiros listados como dependentes que pagam uma taxa de serviços de saúde e têm o plano da instituição. Caso um aborto cirúrgico seja necessário, a paciente é encaminhada para um provedor fora do campus.
Primeiro, a paciente faz uma triagem via telefone e passa por um aconselhamento para entender suas opções: abortar, dar para a adoção ou manter o bebê. Se o aborto for a decisão final, o procedimento é agendado. Duas pílulas são administradas: uma de mifepristona, que inibe a ação da progesterona, e uma de misoprostol, que induz contrações uterinas. A paciente toma a primeira pílula no consultório e a segunda em casa. Uma semana após o tratamento, ela faz um retorno. O aborto medicamentoso tem de 98% a 99% de eficácia, de acordo com um guia no portal da universidade.
“Os serviços de saúde devem atender às mulheres em todas as necessidades da vida reprodutiva. A necessidade de interromper uma gravidez pode acontecer e devemos ser capazes de atendê-la para evitar o aborto inseguro”, disse ela.
Mulheres em seus 20 anos fizeram mais da metade (57%) dos abortos de 2021 nos EUA, de acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do país. Também tiveram a maior incidência de abortos por mil mulheres: 19,7 entre mulheres de 20 a 24 anos e 19,4 entre mulheres de 25 a 29 anos.
Marques é um ponto de apoio para brasileiros e outros imigrantes tentando navegar pelo sistema de saúde americano, incluindo mulheres que desejam abortar. “Sempre que eu pego meu telefone tem alguém atrás de mim”, diz.
“Já fui muito procurada para aborto por mulheres da comunidade: evangélicas, não evangélicas, jovens, estudantes. Todos os tipos de mulher imigrante. Aí eu faço a triagem e indico para uma clínica.”
Graduada e mestre em enfermagem pela Universidade Federal de Minas Gerais, Marques começou sua carreira no sistema de saúde público brasileiro. No fim dos anos 1980, ela e as colegas começaram a notar uma diminuição dos casos graves após abortos ilegais. “Começou a correr entre nós que as mulheres estavam usando uma tal de pílula do aborto”, conta. “Não tínhamos dados concretos, mas ficamos felizes de saber dessa opção, que parecia segura.”
O Cytotec, remédio usado contra úlceras, foi descoberto como abortivo por acaso por mulheres brasileiras. “Muitas mulheres feministas correram para comprar, para guardar”, conta Marques. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) classificou o produto como medicamento controlado em 1998. Hoje, muitas gestantes ficam à mercê de traficantes, que vendem as pílulas por R$ 1 mil a R$ 2 mil.
Em 1994, Marques era enfermeira obstétrica em Betim, município da região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Ela estima que cerca de 25% dos atendimentos na maternidade onde trabalhava eram curetagens após abortos, um procedimento de raspagem do colo do útero para evitar infecções. Acompanhou em primeira mão as consequências de abortos induzidos ilegalmente.
“Eu vi muitas mortes horríveis, situações muito tristes. Na minha experiência, as mulheres que morrem de aborto são as pobres, as pretas, as trabalhadoras, as que já têm filhos.”
Muitas vezes era Marques quem dava a notícia da morte aos parentes. Várias das pacientes eram adolescentes de 14, 15, 16 anos. Em um artigo de 1998 escrito durante o mestrado, ela descreveu o aborto ilegal induzido como um “grave problema de saúde pública”, principalmente pela relação do procedimento com morbidade e mortalidade materna.
“A morte de mulher por aborto é muito angustiante”, ela diz. “Você está no plantão, fazendo parto, todo mundo feliz e uma mulher morre. Em geral, ela já chega com uma infecção. A situação vai ficando grave e ela morre de sepse, que é uma infecção generalizada.”
A enfermeira viu mulheres tentarem abortar de qualquer maneira, seja por vias legais ou ilegais, inserindo tubos, talos de mamona e cabos de cabide no útero –às vezes por 24 horas– para induzir contrações uterinas e interromper a gestação.
Marques está em Columbia há quatro anos. Também atua na organização Defend Democracy in Brazil, nos EUA, e na Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e na Articulação de Mulheres Brasileiras, no Brasil.
Para ela, o aborto é mais um procedimento relacionado à saúde da mulher, que deve ser resolvido na privacidade de cada consultório. “Isso é algo resolvido entre a mulher e a médica. Acabou o assunto. Não tem nada de mais”, disse.
Contatada, a Universidade Columbia não quis dar declaração.
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ISABELA ROCHA / Folhapress