SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O jorro nervoso de palavras da mãe, em contraponto às respostas monossilábicas do filho, revelam, na peça “Mãe e Filho”, duas pessoas que lidam com um abismo existencial enquanto tentam uma conexão e confrontam as próprias vivências.
Ela é uma funcionária pública bem-sucedida em Oslo, na Noruega, que teve um filho indesejado e o deixou aos cuidados dos pais para estudar e construir a carreira profissional. O filho pensa que talvez fosse melhor não ter nascido e, gélido, expõe a ausência da mãe.
A peça, protagonizada por Vera Zimmermann e Tiago Martelli, é uma montagem brasileira do texto dramatúrgico do norueguês Jon Fosse, vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2023. Sob direção de Lavínia Pannunzio e Carlos Gradim, está em cartaz no Sesc Ipiranga.
Ao anunciar o prêmio, ano passado, a Academia Sueca saudou Fosse por “sua dramaturgia e prosa inovadora que dá voz ao indizível”. Autor de mais de 40 peças, ele é o dramaturgo mais montado na Noruega desde Henrik Ibsen, um dos pais do teatro moderno com quem costuma ser comparado.
“Fosse nos mostra uma família em que todos e cada um são vistos apenas em seus papéis, sociais e de gênero. Um lugar em que o afeto precisa sempre ser reconstruído. O absurdo toma forma, e o que se tem, então, são dois estranhos unidos por uma gestação e um nascimento. Desesperadamente, nada além disso”, afirma Gradim.
A peça reflete sobre o lugar que a estrutura social patriarcal e machista reserva para as mulheres e coloca em cena uma mãe que tentou escapar da opressão, mas, ao mesmo tempo, a reproduz ao valorizar as relações hierárquicas de poder em seu espaço de trabalho.
A discussão contemporânea sobre o direito ao aborto também aparece, pois a mãe teve negado por um comitê médico o desejo de interromper a gravidez -e só por isso o filho que a confronta nasceu.
Ele sabe e fala sobre isso, o que proporciona uma complexidade delicada ao assunto.
É ela, a mulher, que tem questões a resolver com o passado. “Deu tudo certo para nós dois”, ela diz ao jovem, em uma aparente tentativa de justificar as suas decisões. O filho cresceu longe, mas ela estudou e se tornou “alguém”. Ele, por sua vez, também tem conquistas intelectuais e profissionais, que a mãe tem dificuldades em lembrar com nitidez.
Uma proposta cenográfica com traços minimalistas e crus faz com que o foco esteja o tempo todo no embate dos dois personagens. Uma espécie de plataforma os aproxima da plateia em algumas cenas -e o olhar distante do filho, nesse momento, sintetiza a relação familiar dolorosa e as marcas que ele carrega.
O jogo de luz, os claros e escuros, ressaltam a passagem do tempo e acentuam a tensão da narrativa desenvolvida no palco.
“Descobri esse texto em 2018. Li outras três peças do Fosse, e ‘Mãe e Filho’ foi a que mais me interessou”, diz Martelli, idealizador da montagem. “A maternidade é um tema inevitável. E, nessa peça, o Fosse apresenta uma relação entre mãe e filho completamente tensa, do início ao fim”.
A tensão foi o que mais interessou ao ator, além dos silêncios, das pausas e das repetições, elementos característicos da escrita do dramaturgo e que proporcionam um ritmo peculiar ao texto.
CRISTINA CAMARGO / Folhapress