RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Por cerca de 60 anos, o Cemitério dos Pretos Novos funcionou como um depósito de corpos de escravizados recém-chegados da África ao porto do Rio de Janeiro -aqueles que não sobreviviam aos maus tratos da captura e à viagem transatlântica dos navios negreiros eram enterrados no local.
Dezenas de milhares de corpos despedaçados, queimados e espalhados, cobertos apenas com algumas pás de terra, eram dispensados no cemitério que funcionou de 1772 a 1830, no Valongo, na zona portuária carioca.
O local abrigou cerca de 50 mil ossadas de africanos, que “eram enterrados nus, envoltos e amarrados em esteiras, sem qualquer ritual religioso, reza, encomendação ou sacramento”, segundo o historiador Murilo de Carvalho na introdução do livro “À flor da Terra” do também historiador Júlio César Medeiros.
O terreno destinado aos sepultamentos era muito pequeno para tantos corpos que era cortados e imprensados ali. Apesar disso, é considerado o maior cemitério de escravos deste gênero nas Américas. “Pretos novos” é como eram chamados os cativos africanos que chegavam já mortos ou morriam logo após o desembarque.
A existência do cemitério ficou escondida por mais de 160 anos. Ele só foi descoberto em 1996, quando uma família resolveu fazer uma obra em seu quintal.
Merced e Petrúcio Guimarães dos Anjos descobriram acidentalmente o Cemitério dos Pretos Novos, ao iniciarem as reformas em sua residência, na rua Pedro Ernesto. Naquele ano, iniciou-se o processo de salvamento arqueológico dos remanescentes ósseos.
“As ossadas começaram a aparecer logo no primeiro dia de obra. Cheguei a separar os ossos em 11 caixas, eram ossos de cabeça, pedaços de arcada dentária, estavam bem quebrados, mas dava para identificar. Eu peguei as caixas de papelão em um mercado para conseguir dar conta da grande quantidade de ossada”, conta Merced, que procurou um vizinho que estudava a história do bairro e confirmou que no local funcionava um cemitério de escravizados há mais de cem anos.
Após a descoberta, o IAB (Instituto de Arqueologia Brasileira) confirmou que os vestígios arqueológicos se tratavam das ossadas depositadas no antigo Cemitério dos Pretos Novos.
Para abrir sua casa à pesquisa, ela e o marido Petrúcio e as três filhas foram morar em um galpão particular, onde ficaram por três anos. A família Guimarães dos Anjos resolver então retornar à sua residência e realizar por conta própria exposições itinerantes com o material encontrado nas escavações.
As atividades eram realizadas sem qualquer tipo de patrocínio ou subvenção. “Nós entendemos a importância desse lugar para a história da cidade e principalmente para a divulgação da história da escravidão e dos pretos novos, e tornamos um espaço de visitação pública”, disse Merced, carioca, filha de português e espanhola.
Após anos aguardando alguma iniciativa do poder público, a família, com ajuda de alguns amigos, fundou no local o IPN (Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos), em 2005.
Cerca de quatro anos depois, o local virou um deu início a oficinas e palestras. Além disso, recebeu a premiação máxima do Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), concedida pela preservação do sítio arqueológico.
Hoje o terreno reúne biblioteca e memorial com painéis, fotos e parte dos fragmentos encontrados no sítio arqueológico, como artefatos domésticos.
Em um galpão anexo funciona a Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea, aberta em 2011. Nesse mesmo ano, ocorreu a primeira pesquisa arqueológica cientificamente orientada, que buscou a localização exata do cemitério para fins de preservação.
A partir de novas investigações arqueológicas em 2017, foi encontrado o primeiro esqueleto inteiro e articulado no cemitério. As análises iniciais apontam que o corpo pertencia a uma jovem africana capturada e sequestrada para ser vendida no mercado da escravidão, no Rio de Janeiro, mas que não resistiu aos maus tratos.
A equipe de arqueologia batizou o achado de Bakhita, em homenagem à padroeira dos sequestrados e escravizados, Santa Josefina Bakhita, a primeira santa africana, canonizada em 2000 pelo papa João Paulo 2º.
“A existência do cemitério era conhecida por historiadores e pela literatura, mas foi apagada. Isso ficou totalmente desconhecido e nunca foi interesse falar sobre a real história desses africanos sequestrados e trazidos para o Brasil. É isso que inspira a nossa trajetória até aqui. Precisamos manter viva essa memória, precisamos mostrar, falar sobre o que aconteceu para entender como a gente veio parar nessa sociedade que ainda escraviza, que tira o nosso conhecimento”, afirmou Merced, hoje presidente do IPN.
Para trazer luz sobre essa história, ela diz que o instituto planeja lançar ainda neste ano, em comemoração aos 250 anos do Cemitério dos Pretos Novos, dois livros de óbitos que trazem dados sobre o sepultamento dos escravizados enterrados no local.
“Tem alguns buracos, alguns anos que foram simplesmente apagados, mas conseguimos reunir dados de longos períodos sobre esses enterros. Esses livros que vamos lançar trazem o nome de quem mandou enterrar, de qual navio o escravizado chegou e de que porto ele veio. É um material rico, que vai permitir a realização de muitas pesquisas que vão revelar muitas histórias”, disse.
Ainda segundo Merced, os exemplares que devem levar os títulos “A Morte do Valongo” e “O Silêncio Que Grita” são resultado de pesquisas de registros encontrados no museu de Arte Sacra da Catedral do Rio de Janeiro.
ALÉXIA SOUSA / Folhapress