BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O ex-secretário da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes confirmou em depoimento à Polícia Federal ter tratado diretamente com Jair Bolsonaro (PL) da liberação das joias presenteadas pela Arábia Saudita e apreendidas na alfândega do aeroporto de Guarulhos (região metropolitana de São Paulo).
Em março, a Folha revelou, com base em relatos feitos em condição de anonimato, que os dois haviam falado sobre o assunto por telefone em 27 de dezembro de 2022, dias antes do fim do mandato de então presidente.
A existência da ligação representava o primeiro indício de participação direta do então mandatário na tentativa de liberação dos itens.
O ex-chefe da Receita afirmou à corporação ter conversado sobre o assunto com Bolsonaro em duas ocasiões. A primeira foi um encontro pessoal na primeira quinzena de dezembro de 2022, possivelmente no Palácio do Planalto. A segunda foi o telefonema do dia 27 de dezembro.
No relatório final sobre o caso, a Polícia Federal indiciou o ex-presidente sob a afirmação de que houve desvio ou tentativa de desvio de itens cujo valor de mercado chega a R$ 6,8 milhões.
O órgão diz ter havido “uma associação criminosa voltada para a prática de desvio de presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais”.
A primeira reunião com Bolsonaro em que o caso das joias foi tratado ocorreu, de acordo com o depoimento do ex-chefe da Receita, para apresentação do balanço de sua gestão na chefia do Fisco.
“Ao final da reunião, o presidente da República questionou ao declarante se tinha ciência de alguma apreensão da Receita Federal decorrente de uma viagem para Arabia Saudita”, diz a transcrição do depoimento feita pela PF.
“O declarante respondeu que não tinha ciência, mas que iria pesquisar. […] Quando voltou ao gabinete da Receita Federal solicitou para algum servidor que não se recorda para verificar se realmente existia apreensão e, naturalmente, o detalhamento desta apreensão”.
A seguir, o ex-chefe da Receita diz ter passado o resultado da pesquisa para o tenente-coronel Mauro Cid, então chefe da Ajudância de Ordens de Bolsonaro. “Não houve nenhuma providência, nem iniciativa por quem quer que seja, nem pelo declarante, acerca dessa informação nos dias seguintes.”
A segunda conversa entre ambos é a do dia 27 de dezembro.
“Julio Cesar afirmou que no dia 27 de dezembro de 2022 recebeu uma ligação de Jair Bolsonaro para agradecê-lo pela sua gestão e, nessa oportunidade, o ex-presidente perguntou se teria informações sobre a pesquisa solicitada dias antes sobre as joias retidas. Julio Cesar teria dito ao então presidente Jair Bolsonaro que repassou as informações a Mauro Cid”, escreve a PF em seu relatório.
Vieira Gomes disse ainda que Mauro Cid ligou no mesmo dia para saber quais medidas deveriam ser tomadas para incorporação dos bens ao acervo público da Presidência.
“O declarante reiterou que sempre fez referência ao acervo público como destino dos bens e que teria repassado para Mauro Cid orientações gerais para encaminhar o ofício de requerimento para incorporação dos bens ao órgão Presidência da República.”
O relatório da PF diz ainda que, neste mesmo dia 27, Cid ligou para Marcelo da Silva Vieira, chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, e solicitou a ele que encaminhasse ofício à Receita com pedido para incorporação ao acervo presidencial das joias apreendidas em Guarulhos.
Também em depoimento à PF, Marcelo Vieira disse ter informado a Mauro Cid que não tinha atribuição legal para fazer o pedido.
“Neste momento, ratificando a ciência e participação de Jair Bolsonaro nos atos para desviar as joias retidas, o declarante afirmou que Mauro Cid colocou a ligação no viva-voz e pediu para Marcelo informar o presidente da República Jair Bolsonaro, que somente teria respondido com um ‘ok, obrigado'”.
As investigações mostram ainda que Julio Cesar enviou a Cid, no dia 31 de dezembro, a seguinte mensagem: “Cid, avisou ao presidente que vamos recuperar os bens?”. Mauro Cid respondeu ter avisado.
A Folha procurou as defesas de Bolsonaro e Mauro Cid na tarde desta terça-feira (9), mas não houve manifestação.
Bolsonaro deu versões díspares sobre esses contatos com o então chefe da Receita. Quando o caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo, ele disse não ter ficado sabendo dos presentes barrados na alfândega e negou tentativa de trazê-los de forma ilegal.
Quando a Folha revelou a ligação telefônica entre ele e Vieira Gomes para tratar do tema, o ex-presidente não se manifestou.
À PF Bolsonaro deu outra versão. Disse que sua ação para tentar retirar as joias da alfandega, antes de viajar para os Estados unidos -ele passou uma temporada no exterior nesse período- teve a intenção de “não deixar qualquer pendência para o próximo governo e evitar um vexame diplomático”.
“O ex-presidente ainda alegou que seria um vexame deixar um presente de uma nação amiga ser leiloado como um bem qualquer.”
Polícia Federal protocolou na sexta-feira (5) no STF os documentos do indiciamento do ex-presidente e de mais 11 pessoas.
Bolsonaro é suspeito dos crimes de associação criminosa (com previsão de pena de reclusão de 1 a 3 anos), lavagem de dinheiro (3 a 10 anos) e peculato/apropriação de bem público (2 a 12 anos).
Julio Cesar foi indiciado por associação criminosa, peculato tentado e advocacia administrativa perante a Fazenda.
A PGR (Procuradoria-Geral da República) analisa agora se denuncia o ex-presidente e os demais indiciados. Se isso ocorrer, caberá depois à Justiça decidir se eles viram réus.
A defesa de Vieira Gomes disse não ter tido acesso ao relatório da PF e que seu cliente não praticou qualquer crime, sendo que isso já teria sido demonstrado à corporação.
“Foi com enorme surpresa e perplexidade que tomamos conhecimento, pela imprensa, do indiciamento. Temos convicção de que a inocência dele será reconhecida pelos órgãos competentes”, disse o advogado Conrado Gontijo.
RANIER BRAGON E BRUNO BOGHOSSIAN / Folhapress