Liliana Cavani vai da frouxidão à mão pesada em ‘A Ordem do Tempo’

FOLHAPRESS – No exato dia em que um grupo de amigos se reúne numa casa de praia para comemorar o aniversário de Elsa, circula a notícia de que um enorme meteorito dirige-se à Terra, em velocidade maior que a luz. Esse o princípio de “A Ordem do Tempo”.

A notícia circula discretamente no noticiário, e os convivas não lhe dão grande importância, com exceção de Isabel, a empregada peruana que está com medo de o mundo acabar sem que ela volte a seu país e ali reveja o filho.

A festa continua despreocupada até a chegada do físico Enrico, que trabalha com o assunto e está bem preocupado com a situação. O último meteorito dessas proporções que chegou à Terra foi aquele que fez desaparecer os dinossauros, há 66 milhões de anos ou algo assim.

Enrico tem autoridade bastante para deixar em pânico o grupo, onde ora pessoas entram, ora saem. Diante da iminência do fim, um problema imediato se coloca: a existência ou não do tempo pode ser discutida. Diga-se a favor do roteiro que esse problema que atormenta os físicos é trazido de forma bem suave para o interior do filme.

Diga-se contra o roteiro que o número de personagens em cena é um tanto excessivo, a ponto de uma delas, Jasmine, aparecer no começo do filme e depois ficar quase todo o tempo desaparecida.

Como estamos em um encontro onde quase todos ali são casais e alguns outros já foram ou desejam ser, a consciência de que o tempo que lhes resta pode ser muito curto leva-os a uma espécie de terapia dois a dois. Há muitos segredos entre eles. Cada um tem seu drama pessoal, e não se pode que sejam desinteressantes.

Para vencer a tensão do fim iminente, vale tudo, inclusive assistir à bela cena de Chaplin cozinhando seus sapatos (“Em Busca do Ouro”, 1925). Mas as tensões do momento se impõem. Por exemplo: Elsa teve um romance de adolescência com uma colega, Giulia, que por sinal vai aparecer por lá. O marido de Elsa teve uma história extraconjugal séria. Hora do final, hora de acertar os ponteiros. O tempo se volta sobre si mesmo. Retroagir ao passado faz sentido para quase todos lá (exceto a excluída Jasmine).

O caso mais interessante é o de Paola e Enrico, o físico. Amor antigo nunca realizado. Ela hoje está com Viktor, homem da Bolsa de Valores. Mas entre Paola e Enrico existe também uma tensão evidente demais para passar em branco diante de iminência do fim geral.

Claro, todas essas situações devem um tanto ao teatro psicológico; devem até mesmo a alguns antigos melodramas, mas admita-se que estão devidamente atualizados. Uma mulher que foi violentada, um marido que se descobre ser bissexual, mulheres com histórias de amores lésbicos.

Diga-se em favor de Liliana Cavani que, mesmo diante do fim do mundo (ou justamente por causa dele), as situações evitam as lavações de roupa suja do teatro psicológico (ao qual, de resto, deve bastante): os dramas, inclusive os segredos, fazem parte da existência e vamos em frente. Quer dizer, vamos em frente se o meteorito não fizer de nós os dinossauros da vez.

Se Cavani dirige seus atores com certa frouxidão, de onde resultam atuações por vezes incertas, se em determinados momentos sua mão pesa como chumbo (pobre Viktor, uma vítima de suas desnecessárias ênfases), compensa esse tipo de problemas com a introdução de um ser estranho na história, a empregada peruana.

É estranho como um grupo de pessoas de uma classe média ilustrada pode conviver com uma pessoa —imigrante, de classe inferior, tudo bem— e, no momento em que se dão conta de que o fim de tudo pode estar próximo, todos se entrelaçam e formam um círculo, mas deixam Isabel de fora.

É uma notação em que Cavani insiste, como para lembrar que burgueses esclarecidos, por esclarecidos que sejam, colocam uma distância considerável entre eles e as classes inferiores. Isso não os torna desumanos, como se poderá ver ao final, mas introduz uma tensão lateral no filme.

No todo, apesar de entradas e saídas estranhas e da superpopulação de personagens resulta um filme que consegue ser agradável apesar da mão pesada de Cavani em certas situações, e apesar também do assunto do filme (o fim do mundo), na medida em que seu tema não é bem o fim dos tempos, e sim o que fazem os personagens (e o que fazemos nós) do nosso.

A ORDEM DO TEMPO

– Avaliação Bom

– Onde Nos cinemas

– Classificação 14 anos

– Elenco Alessandro Gassman, Claudia Gerini, Ángela Molina

– Produção Itália, 2023

– Direção Liliana Cavani

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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