SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os casos de injúria racial dispararam no Brasil nos últimos anos, mostram dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) –a alta em todo o país é de 610% na comparação de 2020 com 2023.
Esse aumento é puxado principalmente pela Bahia. O estado, que tem a maior proporção de negros entre as unidades federativas, é responsável por cerca de 8 de cada 10 processos novos nesse período.
Em 2020, foram registradas 675 ações de injúria racial no Brasil. Já em 2023, foram 4.798, sendo 4.049 apenas na Bahia. Ao todo o estado teve um crescimento de 647% no período, ainda maior que o restante do país.
Números parciais de 2024 apontam 1.025 novos casos até abril, sendo 779 na Bahia.
A legislação define como injúria racial quando uma ofensa é direcionada a um único indivíduo, enquanto o racismo ocorre quando a ofensa é dirigida a uma coletividade. Desde 2023, ambos os crimes são inafiançáveis, com pena prevista de dois a cinco anos de reclusão, após uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
Ao todo, brasileiros protocolaram 8.913 processos por injúria racial desde 2020. Desses, 1.256 já foram julgados e 6.786 seguem pendentes. Na Bahia, são 1.057 finalizados (84% do total do país) e 5.270 aguardando apreciação (77% do total).
A base de dados do CNJ não tem informações anteriores a 2020.
Especialistas consultados pela reportagem avaliam que essa concentração de casos na Bahia acontece porque o estado tem a maior proporção de negros no Brasil –22,4% dos habitantes se autodeclaram pretos, e 57,3% se dizem pardos, segundo último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em todo o país, esses números são respectivamente de 10,2% e 45,3%.
Para o Secretário de Justiça e Direitos Humanos do estado, Felipe Freitas, o poder público local fez uma série de ações para estimular denúncias de crimes raciais.
A Bahia, exemplifica o secretário, abriga o mais antigo órgão de igualdade racial do país, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. Nela, há uma rede de gestores voltados a percorrer os municípios e incentivar queixas por racismo e injúria.
O governo baiano também possui um órgão especializado no recebimento e processamento desses casos, o centro de referência Nelson Mandela. Ainda há uma promotoria voltada a tratar exclusivamente de crimes raciais, e a defensoria pública atua ativamente na busca de vítimas. Recentemente, foi criada uma ronda antirracista na Polícia Militar.
“Nós, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, fazemos também inúmeras ações durante as festas populares voltadas a capacitar as polícias para identificar os casos de possível injúria racial nos eventos”, relata Freitas.
Apesar da disparada de casos desde 2020, o tempo médio para realização do primeiro julgamento em casos de injúria diminuiu no Brasil. Em 2020, demorava-se 628 dias (1 ano e 7 meses). Em 2023, 502 (1 ano e 4 meses), ainda segundo o CNJ.
No início de julho, Leonardo Bigolotti, 31, aguardava deliberação do seu caso há 245 dias. Em 8 de novembro, ele relata ter sido alvo de insulto racista num evento em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, e entrou com ação contra a autora.
Naquela data, Leonardo acompanhava uma apresentação da comediante alemã Lea Maria, então assessorada por ele. Após o evento, a artista recebeu seus fãs. Uma delas teria a abordado e questionado de que campo de concentração viera o produtor, único homem negro por lá.
“Todos ficaram paralisados porque foi um choque”, relata Leonardo. “Depois, a mulher pediu desculpas para a Lea, mas não falou ou trocou olhar comigo. É como se eu fosse o preto de estimação”, continua.
Em seguida, um boletim de ocorrência foi registrado. O Ministério Público de Santa Catarina também abriu uma investigação. Todo o processo corre em segredo de Justiça, e os depoimentos já foram colhidos.
Thales Vieira, fundador e diretor do Observatório da Branquitude, diz que esse aumento de ações por injúria racial é positivo, por indicar que as pessoas estão buscando mais a Justiça quando são vítimas de discriminação.
“Atribuo esse aumento a uma expansão da consciência sobre situações que infelizmente são cotidianas, mas eram interpretadas como comuns ou brincadeiras”, diz. “Ao se entrar com uma ação desse tipo, está se reivindicando para si a sua humanidade que o outro tentou retirar.”
Para ele, porém, o sistema de Justiça continua pouco preparado para garantir direitos à população negra.
“Embora haja movimentos, como no CNJ, visando formar juízes e outros atores do sistema judiciário para temas relacionados à raça, esses processos são demorados”, avalia Vieira. “No curso normal do rio, essas instituições condenam e punem pessoas negras e protegem os brancos naquilo que a Cida Bento [psicóloga e ativista brasileira] chamou de pacto da branquitude.”
Neste ano, o CNJ instituiu um grupo de trabalho para elaborar um protocolo de julgamento com perspectiva racial. Segundo o órgão, o documento visa orientar a magistratura brasileira, assegurando decisões judiciais justas, iguais e sensíveis às questões raciais, e reconhecendo as particularidades dos grupos histórica e racialmente discriminados.
“A construção que se propõe está destinada a enfrentar e mitigar o racismo estrutural, institucional e as formas de discriminação deles decorrentes, promovendo uma aplicação da lei mais justa e inclusiva”, afirma o conselho.
Enquanto os casos de injúria aumentam nos tribunais, também há crescimento no número de boletins de ocorrência por crimes de preconceito racial no país, mas em um nível muito menor.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a quantidade de notificações por injúria racial aumentou em 2022, último ano com dados divulgados. Foram 10.990 casos, ante 10.814 em 2021, o que representa um aumento de 1,6%.
Foram os episódios de racismo, porém, a registrar maior salto, com aumento de 68% em 2022. Naquele ano, houve 2.458 ocorrências. Em 2021, foram 1.464, segundo o Fórum. Rio de Janeiro, Bahia e Santa Catarina –estado onde aconteceu o caso de Leonardo– lideraram o crescimento. No estado fluminense, por exemplo, o total foi de 127 para 312 em um ano, aumento de 145%.
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum, afirma que apesar da alta, ainda é um desafio fazer com que as ocorrências sejam adequadamente tipificadas. É comum, segundo ele, policiais dissuadirem a vítima a não seguir com a denúncia ou registrá-la como outra, a exemplo de injúria simples ou lesão corporal.
“Os mesmos problemas são enfrentados por vítimas LGBTQIA+, que foram recentemente acrescidas ao rol de vítimas protegidas pela lei de racismo”, afirma.
Hoje, o principal obstáculo é capacitar os agentes para atender às vítimas adequadamente, segue ele. “Isso passa por conscientizá-los de que o racismo é grave, inaceitável e de que as vítimas devem ser protegidas pelo Estado que esses agentes representam.”
Procurado, o Ministério da Igualdade Racial diz que o Brasil tem, ao longo da sua história, um “processo de naturalização dos crimes de motivação racial, o que é fruto do racismo estrutural que formata as dinâmicas sociais do país”.
Já o Ministério da Justiça, de Ricardo Lewandowski, declara que o aumento de processos reflete a efetivação do acesso à Justiça por parte da população, “que munida de informação adequada e de confiança nas instituições de justiça, passou a exercer seus direitos e denunciar práticas racistas, o que se traduziu nos dados obtidos”.
BRUNO LUCCA / Folhapress