Gervane De Paula mostra as veias abertas de Mato Grosso ao retratar suas mazelas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Esculturas totêmicas de cabeças de bois com línguas enormes ocupam três salas da Pinacoteca ao lado de pinturas coloridas de caçadores carregando onças mortas. As obras são do artista mato-grossense Gervane de Paula, que pinta o Pantanal e a violência do agronegócio desde a década de 1980, e que faz sua primeira mostra retrospectiva em São Paulo.

“Eu não sou do sudeste e dos grandes centros culturais. É mais difícil que as obras de artistas afastados circulem nos grandes centros”, diz o artista. Crescido na periferia de Cuiabá, Paula teve contato com a arte aos 17 anos, quando frequentou o Ateliê Livre de Pintura da Fundação Cultural de Mato Grosso.

O espaço foi criado por uma política pública em 1976, junto a fundação do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT e do Salão Jovem Arte Mato-Grossense. A pintora Dalva de Barros passou a supervisionar uma geração de artistas populares, e o ateliê se tornou um divisor de águas para a arte mato-grossense, segundo Paula.

“Antes os pintores eram todos filhos de fazendeiros e brancos. O ateliê não exigia curso superior [e formou] pintores que se comunicavam mais com a realidade da região”, lembra Paula.

Seus primeiros trabalhos, presentes na mostra, são retratos cotidianos da vida nas áreas mais afastadas do centro, de festas populares à paisagens rurais lotadas de gado. Além de estar sempre à vista, nas estradas ou no campo, o boi é também um símbolo constante do poder do agronegócio na região.

Paula começou a pintar pouco antes da divisão do Mato Grosso em dois estados, em 1976. “Quem dividiu o estado foi o boi”, argumenta o artista. “A pecuária no sul era forte, havia poder econômico para exigir uma divisão.”

Na década de 1980, Paula deixou o ateliê livre para “viajar, ver bienais, ler mais sobre pintura”. As obras do período são pinturas com tons de surrealismo e símbolos regionais, como é o caso de “As Filhas do Fazendeiro”, em que dois jacarés aparecem em um quarto enquanto duas irmãs se abraçam na janela, em frente a uma paisagem típica do Pantanal, de rios largos e vegetação baixa.

Foi naquele momento que ele e Adir Sodré integraram a mostra “Como Vai Você, Geração 80?”, no Rio de Janeiro, que anunciaria uma nova leva de artistas nacionais. A dupla era a única do Centro-Oeste brasileiro. Pouco depois, Assis Chateaubriand, fundador do Masp, compraria boa parte das obras de Paula.

Outras pinturas daquele momento são retratos de cenas cotidianas que, de alguma forma, remetem a fauna e a flora regionais. Exemplos são um par de telas que mostram o fundo de um rio —em uma delas uma raia pinça o pé de um homem, em outra, ela nada solitária sobre lixos acumulados. Em 1988, o artista integrou “A Mão Afro-Brasileira”, mostra histórica que reuniu trabalhos de artistas negros organizada por Emanuel Araújo.

Da década de 1990 em diante, o trabalho de Paula adotou um tom predominantemente político e, além de pintar, o artista passou a entalhar em madeira. As esculturas totêmicas representam sempre animais de biomas presentes no Mato Grosso, figuras muito vendidas a turistas como souvenirs. Em alguns casos, as fisionomias se misturam a ponto de criar criaturas animalescas fantasiosas.

Todas as esculturas são feitas com materiais descartados, encontrados por Paula para serem reutilizados e transformados em algo novo. Algumas delas servem de banco ou podem ser utilizadas como algum tipo de móvel, uma inspiração do artista em seu pai, que era marceneiro. Ele próprio se considera um “objetista”.

“Não são obras folclóricas. Não sou um agente de turismo, sou um artista”, alerta Paula. Em suas línguas ou testas, os animais exibem o preço do quilo de sua carne no açougue, uma provocação sobre a caça ilegal de animais silvestres e a pecuária no estado.

Hoje, a maioria dos compradores de suas obras ainda são colecionadores e instituições localizados no sudeste, diz Paula, ainda que o mercado de arte tenha apostado em possíveis compradores no Centro-Oeste, abastecidos pelo dinheiro do agronegócio. Segundo ele, o tom político de suas obras também não agrada quem quer comprar arte para “decorar a casa”.

“Detalhe de Açúcar Tuiuiú”, um painel que ocupa uma parede inteira com sacos de açúcar da marca Tuiuiú —ave regional que, segundo o artista, é usada como ícone de dezenas de produtos no estado—, tem um moedor antigo fincado em seu centro, com pequenas estátuas de aves dentro dele, como se os bichos estivessem prestes a serem esmigalhados.

A obra é uma menção ao tráfico de drogas, que tem diversas rotas no interior mato-grossense. Ao lado de esculturas de onças queimadas que pedem socorro, uma provocação aos incêndios que destruíram o Pantanal em anos recentes, Paula quer que seu trabalho seja uma metáfora da realidade, nua e crua.

GERVANE DE PAULA: COMO É BOM VIVER EM MATO GROSSO

– Quando De qua. a seg., das 10h às 18h. Qui. das 10h às 20h. Até 01/09

– Onde Pinacoteca – pça. da Luz, 2, São Paulo

– Preço R$ 30

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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