Impunidade marca 10 anos da derrubada de Boeing na Ucrânia

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos fatos mais importantes do longo período de guerra civil na Ucrânia que precedeu a invasão russa de 2022, o abate de um Boeing 777 da Malaysia Airlines no leste do país, completa dez anos nesta quarta (17) marcado pela impunidade.

“Quem disparou o míssil? Quem deu a ordem?”, questionou em uma mensagem gravada em vídeo o presidente da fundação dos parentes das 298 vítimas do incidente, o holandês Piet Ploeg. Ele perdeu o irmão, a cunhada e o sobrinho no voo.

Uma investigação internacional, que pôde recolher os destroços do avião, chegou a vários consensos. Primeiro, que o míssil antiaéreo havia sido disparado de um sistema de fabricação soviética Buk. Segundo, mais contencioso, que a arma fora lançada de território controlado por separatistas pró-Rússia em Donetsk, leste ucraniano.

Em 2022, uma corte holandesa, país de nascimento de 193 dos mortos que voavam de Amsterdã a Kuala Lumpur, condenou à prisão perpétua três pessoas “in absentia” por envolvimento mais genérico na derrubada: os russos Igor Girkin e Serguei Dubinski, além do ucraniano Leonid Khartchenko.

Todos operavam com forças separatistas na região e, na versão da Justiça do país europeu, trabalhado para trazer, empregar e depois devolver o Buk a uma base russa na região do outro lado da fronteira.

O caso foi encerrado em 2023, mas a Holanda peticionou contra a Rússia na Corte Europeia de Direitos Humanos, acusando diretamente o presidente Vladimir Putin de ter autorizado a operação. De forma separada, a Agência Internacional de Aviação Civil ainda apura responsabilidades, visando eventual processo cível.

O Kremlin nega todas as acusações, afirmando que o julgamento foi uma farsa russófoba típica dos tempos convulsionados que a Europa vive. Desde o começo das apurações, os russos tentaram jogar a culpa para a Ucrânia.

Primeiro, sugeriram que o míssil que derrubou o Boeing havia sido lançado por um caça de Kiev. Depois, que fora um sistema antiaéreo ucraniano o responsável pela tragédia. Com o rompimento dos laços com a União Europeia devido à invasão de 2022, as chances de uma solução pactuada são nulas. O então premiê holandês, Mark Rutte, duro crítico de Putin, agora será secretário-geral da Otan (aliança militar ocidental).

O três condenados vivem na Rússia e não serão extraditados —o mais notório deles, Girkin, acabou caindo em desgraça por suas críticas à condução da guerra por Putin e pegou quatro anos de cadeia neste ano por “incitar o extremismo”.

Para os parentes das vítimas, o que fica são as dúvidas. “Não descansaremos até revelar a verdade”, afirmou Ploeg no vídeo.

Ao longo dos anos, a reportagem ouviu versões do que poderia ter ocorrido de pessoas com acesso a informações de segurança em Moscou. O mais provável, dizem, foi um erro de operação por parte dos separatistas, que teriam confundido o Boeing no radar do Buk com um avião ucraniano.

Quando as notícias da queda do avião chegaram, a reação inicial foi de choque e de particular incredulidade, dado que a mesma Malaysia havia perdido um avião idêntico no misterioso caso do voo MH370, que desaparecera quatro meses antes após decolar de Kuala Lumpur rumo a Pequim com 239 pessoas a bordo —um caso sem solução até hoje.

Mas logo a realidade em solo iria dar o tom da indignação pelo ocorrido. Entre o fim de 2013 e o começo de 2014, o governo pró-Rússia de Kiev enfrentou protestos e foi derrubado. Putin reagiu anexando a Crimeia e incitando a guerra civil no Donbass, região que compreende as áreas de Donetsk e Lugansk.

Para a cineasta ucraniana Marina Er Gorbach, que usou a derrubada como pano de fundo no premiado “Klondike” (2023), a queda do avião foi o primeiro tiro de advertência sobre a gravidade da crise, e ainda assim acabou ignorado no Ocidente.

Em conversa com a Folha de S.Paulo no ano passado, ela afirmou que as sanções aplicadas a Moscou em 2014 foram frouxas demais, levando à escalada na guerra civil, que matou cerca de 14 mil pessoas, e à invasão total oito anos depois.

O trauma do episódio inconcluso se espraiou na indústria de aviação comercial. Basta acessar algum site de monitoramento de tráfego de aviões para ver o buraco negro formado em torno da Ucrânia e do sul da Rússia para se ter uma noção desse impacto.

IGOR GIELOW / Folhapress

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