Como Faye Dunaway, de ‘Chinatown’, enfrenta sua fama de difícil em novo filme

CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Este ano, um dos grandes filmes da Hollywood moderna, “Chinatown”, completa 50 anos, e hoje se sabe que a existência do longa ficou por um fio. Literalmente. Nas turbulentas filmagens, Roman Polanski, o diretor, despertou a fúria de sua estrela, Faye Dunaway, quando inadvertidamente arrancou um fio de cabelo da atriz que, na câmera, aparecia espetado para cima.

Foi o suficiente para Dunaway se levantar, disparar palavrões e deixar o set. Só com muita negociação tudo voltou aos eixos. Em uma Hollywood ainda machista, o episódio serviu menos para reforçar Polanski como um cineasta desrespeitoso com seu elenco do que para eternizar Dunaway como uma “atriz difícil”.

“Isso de fato aconteceu. Mas uma coisa é mentira: eu não falei palavrões ali”, diz Dunaway, rindo, hoje aos 83 anos. “Deixar o set daquele jeito talvez não tenha sido o correta a fazer. Devia haver alguma forma de eu ter controlado a minha reação. Mas eu não consegui. O que Roman fez… Não pude aceitar.”

Mas o que foi visto como destempero de uma diva chegada a faniquitos pode ter uma explicação mais profunda. É a própria atriz que abre o jogo, no documentário “Faye: Entre Luzes e Sombras”, dirigido por Laurent Bouzereau, em cartaz na plataforma de streaming Max.

No filme, ela encara dilemas sobre a carreira e a própria vida que evitou discutir por vários anos, inclusive a reputação de ser uma pessoa de difícil convívio, o que pode ser atribuído a uma condição mental que ela demorou a identificar, mas que agora divide com o público —o transtorno bipolar, algo que a fazia ter rompantes de ira e momentos de intensa depressão.

“Há uma excitação, mas também o oposto disso, que é a tristeza. Fiquei muito aliviada ao entender essa questão mental, porque isso explica tudo. Mas, ainda assim, você é responsável pelas suas atitudes, então mesmo que isso possa explicá-las, não necessariamente é uma desculpa”, diz a atriz, que atenuou a condição com remédios.

Ela reconhece que é um desafio constante controlar seus ímpetos. Durante a entrevista, em um hotel em Cannes, onde promoveu o filme, Dunaway cedeu a arroubos levemente autoritários e interrompeu a conversa duas vezes. “Está muito claro. Alguém pode fechar a cortina?”, disse. “Estou com frio nas pernas. Me tragam um cobertor”, acrescentou.

Mesmo octogenária, Dunaway preserva em sua figura um ar imponente e intimidante, uma das características que a fizeram se tornar uma das grandes estrelas dos anos 1960 e 1970. Em uma época em que o público demandava rebeldia e irreverência, ela surgiu na pele de uma fora da lei, em um filme revolucionário, “Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas”, de 1967, dirigido por Arthur Penn.

“Enquanto filmava, sabia que seria um belo filme, mas só. Mas todos ficamos impressionados com o tamanho da reverberação que ele teve após estrear”, ela relembra.

De fato, o longa serviu tanto para escancarar uma face anti-heroica da sociedade americana quanto para fixar Dunaway no imaginário do público como uma mulher bela, segura de si e, apesar de certa frieza, inquestionavelmente sexuada. Ao mesmo tempo em que atraía, amedrontava os homens.

Preservava qualidades da Hollywood clássica, em sua aura inatingível, mas encarnava com perfeição a modernidade da mulher autossuficiente, que correspondia às aspirações feministas dos anos 1970, embora ela própria nunca tenha se considerado feminista.

“Não estou muito nesse vagão. Apoio e acho importante o que as feministas fazem, mas não sou tão ativa nesse sentido”, diz. “Mas, ao interpretar tantas mulheres independentes, que têm uma vida própria, estava correndo junto com elas. Indiretamente, com meu trabalho, fiz parte do movimento.”

Dunaway era uma garota sulista sem grandes aspirações, filha de um militar alcoólatra, o que, segundo a atriz, explica os seus próprios problemas com a bebida. Descobriu o que queria da vida logo que pisou em um palco.

Foi apadrinhada por Elia Kazan, de quem foi discípula em um grupo teatral de Nova York. Foi ele quem lhe ensinou que nada abaixo da perfeição era aceitável. “Você tem que fazer as coisas da melhor forma que conseguir, prestar atenção a cada detalhe. É o que faz as coisas funcionarem. Aprendi isso com Kazan e vários outros grandes com quem trabalhei.”

Seu perfeccionismo a fez ter excelentes desempenhos. Ela foi indicada para o Oscar por “Uma Rajada de Balas” e “Chinatown”, mas garantiu sua estatueta pelo profético “Rede de Intrigas”, de 1976, dirigido por Sidney Lumet, sobre o poder da televisão.

No longa, ela interpretava uma produtora que se destacava em um meio amplamente masculino. Em uma cena marcante pela franqueza sexual, sua personagem diz: “Chego prematuramente ao orgasmo e depois não vejo a hora de me vestir e ir embora”.

“Eu queria muito fazer aquela personagem. O filme tinha um discurso muito importante. Que vale ainda para o mundo de hoje, por isso eu sentia que precisava interpretá-la”, ela diz. “Quando escolho um personagem, é porque sei que tem algo de mim ali.”

No dia seguinte ao seu triunfo na Academia, a atriz fez um ensaio fotográfico à beira de uma piscina com seu Oscar, que renderia uma das fotos mais icônicas sobre o estrelato, batizada de “A Manhã Seguinte”, em clique de Terry O’Neill, com quem a atriz se casaria nos anos 1980.

Foi nessa década, aliás, que a carreira da atriz degringolou, sobretudo após “Mamãezinha Querida”, de 1980, de Frank Perry, no qual ela interpretava uma Joan Crawford que era um poço de truculência, com direito a espancar a própria filha com cabides de metal.

Pensado como um veículo para mostrar até que ponto Dunaway poderia ir em uma caracterização, o longa foi recebido com gargalhadas por seu exagero. Hoje, virou cult, e a formidavelmente operística performance da atriz a fez se tornar um ícone LGBTQIA+.

O documentário traz depoimentos de poucas celebridades, entre elas Sharon Stone e Mickey Rourke, mas é mais valioso quando especialistas dissecam a importância dos filmes da atriz. E há depoimentos de arquivo, inclusive um famoso de Bette Davis, em um programa de TV, dizendo que não voltaria a trabalhar com Dunaway “nem por US$ 1 milhão”. A veterana, que tampouco era conhecida pela simpatia nos sets, contracenou com Faye em “O Desaparecimento de Aimee”, de 1976.

“Nós não nos demos bem”, reconhece Dunaway. “Não senti nada em particular quando ela disse aquilo na TV. Só lamentei. Não tivemos uma boa relação. Essas coisas acontecem.”

Próximo ao fim do filme, Liam, filho adotivo de Dunaway, faz uma indagação. “Se ela não tivesse tantos sentimentos extremos e drama dentro de si, será que teria sido uma grande atriz?”

“Não”, diz Dunaway, ao ser confrontada com a mesma pergunta. “Você precisa ter isso dentro de você. É parte de quem eu sou. Muitas pessoas não precisam lidar com isso ou revelar essas questões o tempo todo. Mas são meus blocos estruturais, então sempre estarei submetida a eles.”

Talvez “Faye” tenha um efeito de reabilitação da atriz e permita um retorno triunfal em algum novo filme. “Hoje, estou mais envolvida na minha vida familiar. Mas vamos ver o que acontece”, ela diz, ao analisar a ideia, que seria o desfecho hollywoodiano perfeito, digno da trajetória de uma estrela tão peculiar.

FAYE: ENTRE LUZES E SOMBRAS

Quando Disponível no Max

Classificação 14 anos

Produção EUA, 2024

Direção Laurent Bouzereau

BRUNO GHETTI / Folhapress

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