SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – São dias difíceis na rua Berggasse, 19, em Viena. Encerrado em seu consultório, o doutor Sigmund Freud é pressionado por um oficial nazista a deixar o país. Irônico, ele diz que ser judeu, em tempos de perseguição, é uma benção. E que, se não o fosse, se converteria só para irritar os antissemitas. A plateia urra, numa gargalhada conjunta. Irritado, Freud afirma ainda que, se Deus existisse, ele seria o diabo. Um casal ofendido deixa a sala de espetáculos.
A peça “Freud e o Visitante”, encenada pelo Grupo Tapa no Teatro Ruth Escobar, é um exemplo do atual sucesso, na cena teatral brasileira, de obras que tematizam o universo da psicanálise. O fenômeno é percebido também nas longas temporadas de “A Última Sessão de Freud” e de “Sra. Klein” e se motiva pelo desejo do público, a cada dia mais religioso, de pôr à prova a sua fé. Do mesmo modo, as peças, ambientadas em consultórios, enfatizam a liberação de sentimentos, efeito compartilhado pelo teatro e pela psicanálise.
Angustiadas depois da pandemia, as pessoas lotam as salas numa busca por reflexão e alívio. “A necessidade de lidar com o simbólico não diminui porque a sociedade se comporta hoje de uma maneira literal”, diz Eduardo Tolentino de Araujo, fundador do Grupo Tapa.
“Além de estar diante do metafórico, o teatro permite o reconhecimento de emoções reprimidas, o que é comum ao consultório do analista.” Araujo faz menção ao conceito de catarse, criado na Grécia antiga, por Aristóteles, em sua “Poética”. O termo se define como uma purificação do espírito do espectador, que ocorre por meio da encenação de certas ações.
Escrito pelo autor belga Éric-Emmanuel Schmitt, “Freud e o Visitante” é o texto mais encenado no teatro contemporâneo francês. Na peça, o psicanalista, interpretado por Brian Penido Ross, já doente, com um câncer na boca, vê a sua filha, Anna, papel de Anna Cecilia Junqueira, ser detida pelo nazista, personagem de Adriano Bedin, para um interrogatório. Como se não bastasse, ele ainda recebe a visita de um homem misterioso, encarnado por Bruno Barchesi, que não tem a identidade revelada ao longo de toda a história.
A obra se distingue por inverter os papeis e aqui não existe nenhum chiste sexual. Freud se deita no divã para discutir, com o visitante, a existência de Deus. “Há uma tendência nas peças atualmente de dar respostas para que o público seja apaziguado”, diz Araujo. “Em teatro nem sempre as coisas se resolvem.” Segundo o psicanalista Antonio Quinet, que estuda a relação entre a arte teatral e a psicanálise na companhia Inconsciente em Cena, a sociedade está mais angustiada, nos anos posteriores à pandemia, com o confinamento e o luto coletivo.
Não por acaso, Quinet afirma que seu consultório recebeu mais pacientes, no mesmo período. No mundo contemporâneo, diz ele, as pessoas também ficam mais ansiosas, quando tentam alcançar os ideais de produtividade e felicidade ditados pelas redes sociais.
Por isso, buscam liberar as suas emoções no teatro. Além da catarse, ele identifica, na prática teatral, o conceito de transferência, uma condição para o tratamento psicanalítico. “O espectador vê em cena os crimes que gostaria de cometer”, afirma. “Teatro e análise são duas maneiras de dar prazer ao inconsciente.” Afinal, uma peça ou uma sessão só ocorre quando há identificação entre os envolvidos. Essas duas áreas, no entanto, não estão unidas apenas pelos efeitos que causam.
As semelhanças são também teóricas. Em seu livro “Inconsciente Teatral: Psicanálise e Teatro Homologias”, que acaba de ser lançado, Antonio Quinet sustenta a tese de que o inconsciente humano pode ser representado por um palco onde uma peça é encenada.
“Somos atores de um enredo que nos escapa, e o autor é o inconsciente”, diz. É nesse lugar que todos projetam, em imagens e ações cênicas, os seus desejos mais recônditos. Ao desenvolver a sua teoria, Freud recorreu, por diversas vezes, à linguagem teatral, para elaborar certos conceitos.
O próprio inconsciente não se chamava assim. De início, Freud utilizava a expressão outra cena. Em seu encontro com o médico Jean-Martin Charcot no hospital Salpetrière, em Paris, o psicanalista observou que a estrutura da neurose é teatralizada. Para caracterizar os sintomas da histeria, Charcot organizava demonstrações públicas de suas pacientes, que se contorciam e se debatiam. Daí, o surgimento do popular ataque histérico. Da mesma forma, a neurose obsessiva tem sua performance, que ganha a forma de rituais.
Mais de cem mil pessoas já viram a peça “A Última Sessão de Freud”, que agora viaja o país. Em comum com a montagem do Grupo Tapa, há o recorte temporal, a perseguição nazista nos últimos anos de vida de Freud, e o tema, a religião.
Escrito pelo americano Mark St. Germain, o texto adapta o livro “Deus em Questão”, de Armand M. Nicholi Jr., e imagina um debate entre Freud e o escritor C.S. Lewis, papel de Claudio Fontana, que negou a fé e, depois, passou a defender o cristianismo. Tanto sucesso se explica também, na visão de Wagner, pelo desejo do público em investigar a sua existência e pôr à prova a fé. Uma pesquisa do Instituto Ipsos, realizada no ano passado, mostrou que o Brasil é o país que mais se crê em Deus.
“Acho que a fé é o assunto que mais comove as plateias. Penso que o mais interessante é Freud ter tido argumentos para recusar a religião, embora ele não tenha negado o debate em sua vida”, afirma Odilon Wagner, que encarna o personagem em sua montagem.
A atriz Ana Beatriz Nogueira tem se concentrado em peças sobre o universo da psicanálise. Além da recém-encerrada temporada de “Sra. Klein”, em que deu vida a Melanie Klein, dissidente de Freud, ela agora estreia como diretora teatral em “Ensaio Para um Adeus Inesperado”, com os atores Caio Manhente e Natália Lage. A obra de Sérgio Roveri, agora em circuito na Grande São Paulo, encena a elaboração do luto de uma mãe, que perde seu filho de um modo trágico.
“Atuar também é uma experiência psicanalítica”, diz ela. “Nós sempre aprendemos com as nossas personagens e isso nem sempre ocorre quando estamos diante de profissionais não muito bons.”
Não se pode negar que o interesse do público se deve também pela popularidade que a psicanálise ainda tem no Brasil, na França e na Argentina. Inclusive, o pensamento de Freud, nesses países, já não é visto tanto como um tabu, associado à loucura.
Não por acaso, a peça “Homens no Divã” tematiza a queda desse tabu. Comemorando uma década em cartaz, a produção viaja agora o país, correspondendo ao filão comercial, no pós-pandemia. No texto de Miriam Palma, três homens, Renatão, papel de Renato Seabra, Cadú, personagem de Carlos Travertino e Fred, interpretado por Frederico Fernandes, expurgam os estereótipos masculinos numa sessão com Maczka, a analista, de quem só ouvimos a voz, que agora é da atriz Susana Vieira.
Na visão do diretor Darson Ribeiro, que tem formação em psicanálise, a catarse não é capaz de dar um sentido à existência das pessoas, como pretende os manuais de autoajuda. “O espectador vai a essas peças porque quer melhorar, num mundo em que o uso da tecnologia só nos afasta”, afirma o diretor. “Teatro não é lugar da diversão pela diversão.”
FREUD E O VISITANTE
– Quando Até 1º de setembro; sex. a dom. às 20h
– Onde Teatro Ruth Escobar – r. dos Ingleses, 209
– Preço R$ 80
– Classificação 14 anos
– Autoria Éric-Emmanuel Schmidt
– Elenco Adriano Bedin (Nazista), Anna Cecília Junqueira (Anna Freud), Brian Penido Ross (Freud), Bruno Barchesi (Visitante)
– Direção Eduardo Tolentino de Araujo
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress