SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No verão escaldante de 1974, Boston está dividida por protestos violentos contra um decreto governamental que obriga a redistribuição e o transporte de alunos entre bairros de maioria branca e de maioria negra, na tentativa de integrar as escolas e promover a igualdade educacional. O thriller se passa em meio à resistência brutal contra o fim da segregação.
Assim como outros descendentes de irlandeses brancos, Mary Pat Fennesy é uma orgulhosa moradora de Southie, bairro majoritariamente habitado pela classe trabalhadora. Mesmo com dois empregos, não consegue manter as contas da casa em dia. Ela sobrevive com sua filha adolescente, Jules, entre latas de cerveja e bitucas de cigarros no conjunto habitacional Commonwealth, onde sempre morou.
Viúva do primeiro marido, divorciada do segundo e tendo perdido o filho mais velho por overdose, a filha é tudo que lhe resta. Até que uma tarde, Jules vai para uma festa e não volta.
Na mesma noite um jovem negro, Augustus Williamson, é encontrado morto nos trilhos do metrô em circunstâncias suspeitas na “parte branca da cidade”. As tensões raciais e o silêncio da comunidade deixam evidente que os casos estão relacionados.
Movida a raiva e vingança, Mary Pat se torna uma pária quando começa a atrapalhar os negócios de Marty Butler, poderoso chefe da máfia irlandesa que controla a região. A protagonista não questionava nenhuma das tradições de Southie até o desaparecimento de sua filha. Agora excluída pelo grupo, ela passa a ouvir mais atentamente a uma “outra voz” interior que reproduz o racismo enraizado na comunidade.
Mary Pat insiste consigo mesma que não há preconceito, apenas a luta de classes alimentada por quem tem poder. “Gente pobre falando merda sobre gente pobre. Não tem nada a ver com raça. Eles querem que fiquemos brigando uns com os outros feito cães por qualquer resto de comida para que a gente não perceba que estão fugindo com o banquete.”
Em uma entrevista de 2009, Lehane comenta que desde pequeno acreditava que toda luta racial era uma luta de classe. Mary Pat parece espelhar essa crença racista.
Mas o autor deixa evidente a consciência do preconceito por trás desse discurso quando a protagonista debate com um juiz imaginário o próprio racismo –ele expõe a hipocrisia que existe na diferença entre o que a protagonista acredita que pensa e o que ela não consegue admitir para si mesma que pensa.
É um livro corajoso na sinceridade com que retrata a mente preconceituosa –o racismo que não se anuncia como crença, mas que está lá enraizado e é transmitido de geração em geração.
Há apenas um exagero de violência gráfica tratada de forma banal e caricata, como um filme de ação pouco crível. No entanto, a notícia de que a Apple TV+ está desenvolvendo uma série dramática baseada no livro é promissora.
Lehane é um roteirista experiente com histórico de sucesso de bilheteria –seus livros deram origem a filmes como “Ilha do Medo”, de Martin Scorsese, e “Sobre Meninos e Lobos”, de Clint Eastwood– e a adaptação para a TV tem potencial para explorar os temas complexos do romance e alcançar público mais amplo.
Acompanhar uma mãe de meia-idade guerreando com a máfia local para encontrar sua filha provoca certa satisfação, apesar da inverossimilhança e do sadismo que afastam o leitor da protagonista.
Em um mundo em que jovens negros ainda podem ser assassinados por estarem no lado errado da cidade, “Golpe de Misericórdia” é uma obra que entretém, mas não aprofunda as considerações que levanta sobre desigualdade e a interseção entre política, corrupção e drogas.
GOLPE DE MISERICÓRDIA
Preço: R$ 99,90 (368 págs.); R$ 44,90 (ebook)
Autoria: Dennis Lehane
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Luiz A. de Araújo
Avaliação: *Bom*
ANA LUISA LELLIS / Folhapress