SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Primeira mulher latino-americana a assumir a presidência da Sociedade Internacional de Aids (IAS), a infectologista brasileira Beatriz Grinsztejn, 63, diz que, embora os novos medicamentos tenham potencial de revolucionar a prevenção e o tratamento do HIV, eles não serão suficientes para acabar com a Aids.
Para ela, o Brasil precisa olhar para as populações mais afetadas pela epidemia, como homens jovens que fazem sexo com homens, as travestis e as mulheres trans, e criar estratégias específicas que levem conta os determinantes sociais em saúde.
“Esses grupos estão sob uma vulnerabilidade muito maior em relação à infecção pelo HIV. O menor nível educacional, o pior status socioeconômico, questões relacionadas ao racismo, tudo isso está interligado”, diz ela, que também chefia o laboratório de pesquisa clínica do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
Segundo Grinsztejn, o país tem que garantir que a PrEP (profilaxia pré-exposição) disponível no SUS (Sistema Único de Saúde) chegue a quem mais precisa. Dados do Ministério da Saúde mostram que a maior parte dos usuários da profilaxia é composta por homens que fazem sexo com outros homens (82%), em geral brancos (55%) e com alta escolaridade (72%). As mulheres cisgênero são apenas 6% dos usuários, enquanto as mulheres trans são 3%.
É preciso falar mais sobre a prevenção do HIV nas escolas e nas comunidades mais vulneráveis para que as pessoas possam entender os seus direitos, afirma. “A gente tem PrEP, a gente tem PEP [profilaxia pós-exposição ao HIV], testagem, tratamento. Tudo isso está disponível nos serviços de saúde.”
Nas escolas, ela acredita o trabalho passa por educar os mais jovens para que tenham a percepção de risco. “Elas precisam entender que podem estar mais vulneráveis e que precisam, por exemplo, buscar a Prep.”
Um dos seus desafios à frente do IAS, maior associação mundial de profissionais que atuam no enfrentamento do HIV/Aids, será a ampliação do acesso a tratamentos, especialmente nos países de baixa renda. Ela assume oficialmente a função no próximo dia 26, último dia da conferência internacional sobre Aids, que acontece em Munique, na Alemanha.
Com os novas as versões injetáveis de Prep de longa duração, cujos estudos demonstraram resultados surpreendentes na prevenção contra o vírus, essa discussão sobre as iniquidades no acesso aos medicamentos tornou-se central.
Quando aprovado, o lenacapavir, administrado a cada seis meses, deve custar aos Estados Unidos cerca de US$ 42.240 (cerca de R$ 235 mil) por paciente por ano. Já o cabotegravir, uma injeção a cada dois meses, é vendido aos países em desenvolvimento a US$ 180 (R$ 1.000) por paciente/ano. O orçamento da África do Sul para PrEP oral, por exemplo, é de cerca de US$ 40 (R$ 222) por paciente/ano.
De acordo a infectologista, um dos caminhos para ampliar o acesso ao cabotegravir foi um acordo feito entre a farmacêutica ViiV Healthcare, fabricante do medicamento, e a Medicine Patent Group, uma agência desenvolvida pelas Nações Unidas que tenta tornar as tecnologias médicas mais acessíveis. Três fabricantes de genéricos da Índia vão produzir a droga, mas nenhum deles deve torná-la disponível antes de 2027.
Esse acordo envolve 90 países, mas o Brasil não faz parte da lista. “Nós reconhecemos a patente do cabotegravir, tanto da molécula quanto da formulação injetável. Então, infelizmente, não estamos dentro do acordo com o Medicine Patent Group. A gente depende de negociações com o produtor para que o nosso sistema possa eventualmente vir a incorporar essa droga”, diz ela.
A aposta nesses medicamentos de longa duração é que eles possibilitem uma maior adesão ao tratamento. “Não é nada simples a manutenção da adesão para qualquer doença crônica tão complexa. A PrEP precisa de um uso sistemático, então é nesse sentido que a gente vê que os esses produtos podem vir a facilitar esse engajamento porque eles exigem menos contato com o sistema de saúde.”
Mas ela reforça que, enquanto essas injeções não estão disponíveis, o comprimido ofertado no SUS é altamente eficaz. “Um trabalho educativo do ponto de vista da manutenção da adesão também pode ter efeito e pode ser muito útil porque isso já está na nossa mão. Não depende de acordos.”
Mesmo com esses avanços nos medicamentos voltados à prevenção, a médica considera importante que a busca por vacinas eficazes contra o HIV continue. “A gente sabe que, em uma doença infecciosa, o que realmente funciona de vez, a longo prazo, é uma vacina. Precisamos continuar pesquisando e trabalhando para a busca dessa vacina, não podemos desistir.”
Além das estratégicas biomédicas, Grinsztejn defende ações contra o estigma, a discriminação e a criminalização em muitos países, enfrentados pelas populações mais vulneráveis ao HIV/Aids.
“A questão da educação profissional é muito, muito crítica no nosso mundo. O estigma e a discriminação também estão no profissional de saúde que cuida das pessoas.”
Como lésbica, ela diz que enfrenta na própria pele o estigma e a discriminação. “Eu acho que essa sensibilidade me traz uma chance de poder contribuir [no IAS] de forma diferenciada, de trazer um olhar feminino. É muito importante para as mulheres da nossa região estarem nos lugares de ponta adequados à nossa narrativa do Sul global frente ao mundo.”
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RAIO-X
Beatriz Grinsztejn, 63
Médica cientista em doenças infecciosas com mais de 30 anos dedicados à prevenção e cuidados do HIV. Ela chefia o laboratório de pesquisa clínica em DST e Aids do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz), é professora e investigadora principal da unidade de ensaios clínicos do INI-Fiocruz. Liderou diversos estudos que mudaram o cenário da prevenção e assistência ao HIV e outras doenças infecciosas. É membro de comitês consultivos do Ministério da Saúde do Brasil, OPAS e OMS
CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress